Pela segunda vez na década, comprei a revista. A matéria de capa
faz uma audaciosa proclamação. Pena que não há nada que a sustente.
Deve ser efeito da Semana Santa: Veja apareceu com uma capa
dizendo que há novas provas científicas apontando para a autenticidade
do Sudário de Turim. A matéria em si é uma espécie de informercial de um
novo livro que está saindo por aí, pela Companhia das Letras, chamado O Sinal, de Thomas de Wesselow.
Em meu Livro dos Milagres,
dediquei um capítulo inteiro à questão do sudário, então o tema
obviamente me interessou. Existem, em resumo, quatro linhas de
evidência, independentes entre si, que apontam para o fato de que o
sudário é uma falsificação criada na França medieval:
1. Datação por carbono 14: três fragmentos do sudário foram submetidos a datação por radiocarbono em três diferentes laboratórios, e os resultados, publicados na revista científica Nature, convergem para uma data entre os séculos 13 e 14.
2. Exame microscópico: Walter McCrone, um dos maiores
especialistas em microscopia do mundo e perito em autenticação de obras
de arte, descobriu no sudário pigmentos do século 14 aplicados com uma
técnica usada no século 14.
3. Evidência documental: a despeito de teses fantasiosas em
contrário, os primeiros documentos a citar o sudário são, adivinhe só,
do século 14. Entre eles, há o depoimento de um bispo francês que
afirma ter conhecido o artista responsável pela criação do sudário.
4. Evidência estética: a imagem do sudário não representa um
corpo humano real, e sim um corpo humano distorcido de acordo com as
convenções da arte gótica, que floresceu, adivinhe só, no século 14. As
linhas são alongadas demais, e há assimetria no comprimento dos
membros. Além disso, o sudário traz a impressão da panturrilha e da
sola do pé de uma das pernas de Jesus. Tente fazer isso na cama, tocar o
lençol, ao mesmo tempo, com a panturrilha e a sola da pé, os dois da
mesma perna. Cuidado com a cãibra. Em seguida, imagine-se fazendo isso
depois de morto.
Para ressuscitar (trocadilho intencional) a respeitabilidade científica
— em oposição à respeitabilidade tal como vista pelos olhos dos
sindólogos, entusiastas que estão para o sudário como os ufólogos estão
para óvnis — da tese de que o sudário é verdadeiro, seria preciso,
portanto, refutar, se não todos os pontos acima, ao menos a maioria
deles.
Se Veja (ou suas fontes) tivesse encontrado provas capazes de
eliminar pelo menos duas dessas dificuldades, o feito seria fenomenal.
Assim, pela segunda vez nesta década, comprei a revista. As afirmações
do texto são peremptórias: ele diz, por exemplo, que os argumentos do
novo livro da Companhia das Letras “põem para escanteio todos os
desmentidos científicos” (já disse que a matéria toda parece um
infomercial?) acerca do sudário.
Audaciosa proclamação! Pena que não há nada, ali, para sustentá-la.
Imagem "milagrosa" do sudário de Turim (E) e réplica criada pelo cientista italiano Luigi Garlaschelli |
Para ser justo, há um infográfico na matéria que tenta conciliar o
sudário de peça-única à menção dos “panos” e da faixa da cabeça, mas com
sucesso um tanto quanto discutível.
Das quatro linhas de evidência que apontam para o sudário como uma falsa relíquia, Veja
se dirige a apenas uma: a datação de carbono 14. Um dos argumentos
levantados é o do pólen — de que teriam sido encontradas, no tecido do
sudário, amostras de pólen de plantas típicas da Palestina. Veja cita pólen identificado em 2001, aparentemente se referindo a uma nova análise das amostras obtidas por Max Frei, vários anos antes.
O que é engraçado, porque Frei morreu em 1983 com a reputação em
frangalhos, depois de ter autenticado os infames (e decididamente
falsos) “Diários de Hitler”. Análises posteriores mostraram que Frei
provavelmente contaminara suas amostras com pólen palestino
deliberadamente, a fim de criar uma “prova” a favor do sudário. Então, o
fato de estudos posteriores de seu material confirmarem o pólen não
provam nada, já que foi Frei quem, provavelmente, colocou-o lá, para
começo de conversa.
O outro argumento contra a datação de radiocarbono é o de que a faixa
de tecido extraída para ser analisada teria vindo de um trecho
restaurado do sudário. O artigo da Nature descreve a remoção da
faixa para análise nos seguintes termos: “O sudário foi separado de seu
pano de fundo ao longo de sua margem esquerda e uma faixa
(aproximadamente 10 mm por 70 mm) foi cortada imediatamente acima do
local de onde uma amostra havia sido removida anteriormente em 1973,
para exame. A faixa veio de um único local do corpo principal do
sudário, afastado de quaisquer remendos ou queimaduras”. A extração foi
feita sob a supervisão de especialistas em tecidos e tecelagem.
Eles podem ter se enganado? Claro. Todo mundo erra. Podem ter tido
azar, também, pegando um trecho exatamente do único ponto do sudário
onde o tecido teria sido reconstituído por meio de uma “costura
invisível”. Mas a principal evidência a favor da existência de um
“remendo indetectável” a olho nu — a presença de algodão e de um corante
vegetal, garança — não é conclusiva: algodão e garança aparecem em
outras partes do sudário, além do trecho extraído.
No entanto, mesmo que o pessoal do carbono 14 tenha sido especialmente
incompetente, ou azarado, ou ambos, as outras três linhas de evidência
em favor da tese da falsificação se mantêm. E Veja não gasta uma
única mísera linha com elas. Embora mencione que o bispo de Poitiers
proibira, em 1355, a veneração do sudário, a revista não diz o motivo:
porque ele sabia que a peça era uma fraude.
Então resumindo: para o sudário ser autêntico, a datação de
radiocarbono tem de ter sido conduzida por incompetentes azarados, o
bispo de Poitiers tem de ter sido um canalha mentiroso (assim como
Walter McCrone), todas as provas documentais da existência do sudário
pré-1350 têm de ter sido destruídas ou escondidas, e o caráter gótico da
imagem tem de ser uma curiosa coincidência.
Tudo isso é possível? Claro. Assim como aquela luz intensa junto à Lua
pode ser uma nave de Andrômeda, por que não? Mas, se tiver de apostar,
eu aposto que é o planeta Vênus.
Carlos Orsi No Amálgama
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