O filme de Ben Affleck inverte e distorce os fatos em sua tentativa frenética de apresentar um agente da CIA como heroi.
Durante o stalinismo, a história foi reescrita com freqüência em
conformidade com a ortodoxia soviética. O protagonismo de Leon Trotsky,
um dos principais arquitetos da Revolução Russa de 1917, foi minimizado
ou apagado – até mesmo fotos de Trotsky em pé ao lado de Lenin, Stalin
e outros membros do comitê central foram desajeitadamente retocadas
para remover vestígios de sua existência.
Com “Argo”, um exercício desenfreado de ufanismo americano e
imperialismo cultural, Ben Affleck cometeu uma forma similar de fraude.
Essa é a opinião de Ken Taylor, o ex-embaixador canadense no Irã que
realmente arquitetou a fuga dos seis reféns que ele e o
primeiro-secretário da embaixada John Sheardown haviam escondido em suas
casas, em situação de risco pessoal considerável.
“Foram três meses de preparação intensiva para a fuga”, explica Taylor.
“Eu acho que o meu papel foi um pouco mais importante do que abrir e
fechar a porta da frente da embaixada.” (Essas são essencialmente as
imagens que comprovam a existência de Taylor no esquema criacionista de
Argo.)
Affleck fez um filme de propaganda, uma auto-felação que inverte e
distorce os fatos em sua tentativa frenética de apresentar o agente da
CIA Tony Mendez (interpretado por ele mesmo) como a pessoa que trabalhou
nos bastidores para realizar a retirada. O roteiro se baseia em
documentos confidenciais da CIA, abertos ao público nos anos 80, que
revelaram como Mendez desenvolveu um disfarce para os seis americanos – o
de uma equipe de cinema que queria fazer um filme de ficção científica
no Irã.
Essa é a única parte do filme de Affleck que possui alguma verdade.
Praticamente todo o resto é uma mentira para satisfazer um público
americano faminto de heróis.
“Tony Mendez ficou um dia e meio no Irã”, diz Ken Taylor. Em vez de
apresentar um relato honesto de uma missão de resgate histórico, que o
embaixador canadense tinha em grande parte planejado e que a CIA apenas
ajudou a executar, Affleck se entrega a uma pirotecnia mal disfarçada
que corrompe a verdade, dando primazia ao envolvimento dos EUA.
Na sexta passada, a frustração de Taylor atingiu o limite. “Não haveria
filme sem os canadenses. Abrigamos os seis sem que nos fosse
solicitado”. Argo tem recebido vários prêmios nos últimos meses. Embora
Affleck tenha sido supostamente “esnobado” por Hollywood ao não ser
apontado na lista de melhor diretor no Oscar, seu longa recebeu várias
indicações.
Além de “Argo” ter sido canonizado por ligas e premiações de diferentes
setores nos meses passados, a questão mais ampla é como Affleck
conseguiu enganar tanta gente em seu caminho para a glória da crítica,
apesar das enormes distorções, invenções e fabricações que o filme
comete para defender a CIA como um grupo de espiões inteligentes. Como a
Grande Mentira tomou conta da imaginação limitada de Affleck?
“Argo” se situa no Irã, logo após a queda do Xá em 1979, quando a
Guarda Revolucionária invadiu a embaixada americana. Seis funcionários
conseguiram escapar e se esconderam por vários dias até que dois deles
entraram na residência do casal Pat e Ken Taylor. Outros quatro foram
para a casa de John Sheardown e de sua mulher Zena depois que o
funcionário consular Robert Anders telefonou para o amigo Sheardown
pedindo que ele o recebesse com seus três colegas fugitivos. “Por que
você demorou tanto?”, foi a resposta do Sheardown.
(Nada disso aparece na versão de Affleck. Sheardown sequer é mencionado.)
Os fugitivos passaram três meses no limbo das duas residências até que
Taylor finalmente convenceu um reticente departamento de estado
americano de que as autoridades iranianas estavam começando a farejar as
casas.
Em seu zelo para contar a história do agente Tony Mendez, Affleck
reescreveu boa parte da história e enxugou radicalmente o papel do
embaixador. Não foi só ele que deixou clara sua discordância. Em uma
entrevista para o jornalista Piers Morgan na semana passada, o
ex-presidente americano, Jimmy Carter, afirmou que “90% do plano foi
dos canadenses”, mas o filme “dá crédito quase completo à CIA”.
Affleck defende sua selvageria autoral dizendo que uma TV canadense já
havia feito um filme em 1981. De acordo com ele, “Argo” foi concebido
para revelar o “papel secreto da CIA” – que basicamente se resume à
criação de uma equipe de cinema a fim de enganar os funcionários da
alfândega no aeroporto de Teerã. “Este filme mostra um maravilhoso
espírito de colaboração e cooperação. É um grande cumprimento para o
Canadá”, afirmou Affleck para mim.
(Taylor tinha originalmente planejado que eles se passassem por
engenheiros, apenas para ter sua ideia rejeitado pela CIA, que de alguma
forma bizarra pensou que o approach hollywoodiano fazia mais sentido.)
Não havia absolutamente nenhuma necessidade de transformar o papel
central do embaixador num “concierge” de luxo, que basicamente servia
bebidas e canapés e seguia ordens. Taylor, que é interpretado pelo
canadense Victor Garber, declarou que “‘Argo’ faz parecer que os
canadenses estavam ali apenas a passeio”.
Affleck respondeu um tanto irritado: “Eu admiro Ken por seu papel no
resgate. Estou surpreso que ele continue a ter problemas com o filme”.
Em outubro, quando Argo estava sendo lançado na América do Norte,
Affleck soube que Taylor estava começando a falar publicamente sobre sua
decepção com seu trabalho. Ben Affleck organizou às pressas uma
exibição e, depois de ouvir suas objeções, concordou em inserir um texto
no início dos créditos: “O envolvimento da CIA complementou os
esforços da embaixada canadense”.
A verdade é outra: Taylor planejou a fuga, enquanto a CIA e seus
homens, Mendez à frente, simplesmente ajudaram a preparar o estratagema
esquisito que serve como um contraponto cômico para o drama subjacente
no Irã. Tony Mendez era uma espécie de assessor técnico. Mas, na
narrativa falsificada de Affleck, todo o heroísmo é reservado para seu
alter ego.
A história real por trás da fuga evoluiu de outra forma. Durante os
quase três meses em que os seis fugitivos estiveram escondidos, o
governo canadense em Ottawa preparou documentos oficiais – passaportes,
carteiras de motorista, até mesmo alfinetes com a bandeira –, enviados a
Teerã via mala diplomática.
O papel da CIA foi forjar os vistos de entrada – mas até isso eles
conseguiram ferrar. Os selos falsos continham um erro catastrófico feito
por um agente, que se equivocou na data de entrada. Um membro da
embaixada canadense, Roger Lucey, apontou a burrada (ele podia ler
farsi, em oposição ao apparatchik da CIA). Lucey passou várias horas
debruçado sobre uma lupa, forjando os passaportes e torcendo para que
seu trabalho penoso passasse despercebido pelas autoridades.
Outro ato flagrante de omissão de Argo é que a CIA contou com Taylor
para fornecer informações sobre o caos da tomada de reféns em curso na
embaixada dos EUA, onde 52 americanos ainda estavam sendo mantidos em
cativeiro pela Guarda Revolucionária. Taylor pediu a um sargento
canadense, Jim Edwards, que saísse e monitorasse, com seu time, a área
ao redor da embaixada dos EUA durante várias semanas, para uma possível
missão dos Estados Unidos.
Edwards foi detido e interrogado por cinco horas, até ser liberado por
volta da uma da manhã. “Nós bebemos um monte de uísque juntos”, Taylor
recordou. “Ele poderia facilmente ter sido preso como um espião.”
Mark Lijek, um dos dois americanos que passaram 79 dias na casa de
Sheardown, confirma o relato. “Toda a embaixada canadense passou a se
concentrar em nossa sobrevivência e eventual saída, o que é praticamente
sem precedentes na história diplomática”, Lijek explicou. “É triste
que Argo ignore tudo isso.”
Argo também inventa três cenas-chaves que nunca aconteceram. A primeira
é quando Affleck-Mendez leva os fugitivos a um local e atravessa um
bazar iraniano. “Isso teria sido suicida,” diz Lijek. A segunda
instância da imaginação fantasiosa de Affleck é a sequencia do
aeroporto, no final, em que a Guarda Revolucionária interroga o grupo – o
que simplesmente nunca aconteceu.
Finalmente, “Argo” inventa o clímax em que um jipe militar cheio de
soldados armados persegue o avião na pista. “É tudo ficção”, conta
Taylor. “Foi bom ir ao aeroporto – exceto por nossos nervos”.
Affleck é um homem cujo coração está normalmente no lugar certo. Ele
apoia causas liberais, defende a liberdade de expressão, é delicado nas
entrevistas e frequentemente crítico da direita republicana. Mas ele ou
é terrivelmente ingênuo ou estúpido quando se trata de sua leitura do
registro histórico. Ele achou que seu bolo fofo de entretenimento lhe
dava a “licença artística” para cortar, ajustar e mentir. Em uma
entrevista ao Hollywood Reporter, afirmou que era um ex-estudante de
assuntos do Oriente Médio da Universidade de Vermont e que escreveu um
artigo sobre a revolução iraniana.
Mas, como um crítico frequente da política externa americana e da
administração Bush, por que Affleck decidiu cantar os louvores da CIA,
que projetou a queda de Mossadegh e a subsequente substituição pelo Xá?
Ele deveria checar os fatos. Podemos perdoar a adição de um jipe
carregado de metralhadoras perseguindo um jato comercial. Podemos
perdoar a adição de um tour suicida em um bazar lotado. Podemos até
perdoar “Argo” por fazer John Sheardown desaparecer. Mas não há como
desculpar uma visão manipuladora e irremediavelmente distorcida da
realidade para maquiar uma peça de propaganda.
Harold Von Kursk
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