O Uruguai e um retrocesso vergonhoso |
Suprema Corte de Justiça do Uruguai
declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei de 2011 que
terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de
Estado durante a ditadura (1973-1985). Os protestos foram imediatos,
inclusive nas ruas. “A Suprema Corte foi indigna”, disse Eduardo
Galeano, que participou de uma manifestação.
Buenos Aires – No meio da tarde da sexta feira, 22 de março, a Suprema
Corte de Justiça do Uruguai conseguiu uma façanha surpreendente e nem
um pouco louvável. Por quatro votos a um, declarou inconstitucionais
dois artigos de uma lei aprovada pelo Congresso em 2011 e que terminava
com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado
durante a ditadura que durou de 1973 a 1985.
Essa lei, agora declarada inconstitucional, impedia a prescrição dos
delitos cometidos por funcionários civis e militares da ditadura, por
serem considerados crimes de lesa humanidade.
O falaz argumento dos senhores juízes da Suprema Corte uruguaia seria
risível se não fosse indigno. Disseram eles que uma lei penal não pode
ser aplicada de forma retroativa. Ou seja, vale uma lei retroativa, de
1986, tempos do então presidente Julio Sanguinetti, anistiando crimes
cometidos durante a ditadura, mas não vale a outra lei que não fazia
outra coisa além de acatar decisões de cortes internacionais indicando
que crimes de lesa humanidade são imprescritíveis.
Trata-se de um retrocesso tão dolorido como absurdo. Em termos
práticos, significa que todos os processos em andamento serão
arquivados. Para isso, basta que os advogados dos réus recorram à
sentença, já que eles teriam sido processados com base em uma lei
inconstitucional. Além disso, abre-se a possibilidade de que os
militares que já estão presos recorram da sentença que os condenou e
voltem, pimpões, à liberdade.
Pelo menos dois desses presos são figuras notórias do breve período
(pouco mais de um ano) em que a impunidade esteve suspensa. O coronel
Tranquilino Machado foi condenado e preso em junho de 2011, como
responsável direto pela morte de um estudante de veterinária em julho de
1973, logo depois do golpe militar de 27 de junho. O policial civil
Ricardo Zabala foi mandado para a cadeia em março de 2012, como cúmplice
do assassinato do professor e jornalista Julio Castro, figura
emblemática da esquerda uruguaia.
Esses dois assassinos podem agora pedir para serem soltos, contando com
o firme apoio nascido da decisão da Suprema Corte. Poderão dizer que
foram condenados por uma lei inconstitucional.
Os protestos foram imediatos. Ainda na sexta-feira, a senadora pela
Frente Ampla Lucia Topolanski, figura histórica da esquerda uruguaia,
disse que pretende abrir um julgamento político contra os juízes da
Suprema Corte. Ou seja, ela quer pedir o impeachment dos magistrados.
Lucia Topolanski, que amargou anos de prisão e torturas, além de
senadora é a primeira-dama do Uruguai. Seu marido se chama Jose Mujica e
é o presidente do país.
Na segunda-feira seguinte à decisão, houve uma manifestação silenciosa
na Plaza Cagancha, no centro de Montevidéu, diante do prédio da Suprema
Corte.
Não houve gritos, palavras de ordem, discursos. Ao longo de uma hora,
tempo que durou a manifestação, houve apenas um silêncio estrondoso,
intercalado por declarações de alguns manifestantes aos jornalistas.
Depois dessa hora, as milhares de pessoas cantaram o hino uruguaio e
foram embora.
Um dos manifestantes era o escritor Eduardo Galeano. Ao falar com os
jornalistas, ele disse que aprendeu, há muitos anos, que a vida consiste
em escolher entre indignos e indignados, e que sempre esteve com os
indignados. ‘Acho que a Suprema Corte foi indigna, pratica a injustiça
e, além disso, proíbe a memória e castiga a dignidade’, disse.
Houve, claro, os que defenderam esse gigantesco passo atrás dado pelos
juízes da Suprema Corte. Um deles foi o ex-presidente Julio Maria
Sanguinetti, que governou o Uruguai em dois períodos – entre 1985 e
1990, e depois entre 1995 e 2000. Ao criticar os protestos e defender o
retorno da impunidade, ele foi bastante coerente com sua história
pessoal. Afinal, foi durante seus governos que se decretaram leis de
anistia a torturadores, violadores, seqüestradores e assassinos, e se
fez de tudo para impedir qualquer investigação que levasse aos que
praticaram terrorismo de Estado.
E assim o Uruguai, que havia conseguido a duras penas avançar na luta
pela busca da verdade, o resgate da memória e a aplicação da justiça,
retrocede de maneira formidável. Se afasta da Argentina e até mesmo do
Chile, e volta a se aproximar do Brasil, onde perambulam, livres,
altaneiros e intocáveis, torturadores, seqüestradores, violadores,
assassinos.
Uma das vozes que protestaram contra a decisão da Suprema Corte foi a
de Macarena Gelman. Neta do poeta argentino Juan Gelman, ela é a
própria imagem do horror. Seus pais, Maria Claudia e Marcelo Gelman,
foram presos na Argentina. Marcelo foi morto pouco depois. Maria
Claudia, grávida, foi levada para o Uruguai. Macarena nasceu num
hospital militar. Tinha menos de dois meses de vida quando foi dada de
presente a um chefe de polícia. Da mãe, nunca mais se teve notícia.
Gelman, um dos mais respeitados poetas do idioma espanhol do nosso tempo, levou décadas de desespero buscando a neta.
Um dos que prometeram ajuda e depois fez de tudo para impedir que essa
busca avançasse foi justamente Sanguinetti. Macarena só soube sua
verdadeira identidade aos 21 anos.
Ao conhecer a decisão da Suprema Corte, que de fato assegura impunidade
aos assassinos de sua mãe, ela disse que o Uruguai merece outro tipo
de Justiça.
No ano passado, e cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de
Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no
caso de Macarena Gelman, e se comprometeu formalmente a suprimir todos
os obstáculos para esclarecer o caso.
Com sua decisão, a Suprema Corte de Justiça – que, como disse Galeano e
vale a pena repetir, foi indigna e pratica a injustiça ao assegurar a
impunidade – garante que esses obstáculos permanecerão, como uma nódoa
pegajosa, sobre o país de José Artigas.
Eric NepomucenoNo Carta Maior
Nenhum comentário:
Postar um comentário