Por Breno Altman, especial para o 247
O cinquentenário do golpe militar traz à baila narrativa que a direita
gloriosamente fabrica para enquadrar o episódio. Núcleo fundamental do
teorema: os militares romperam a Constituição e tomaram o poder, com
amplo da burguesia brasileira, para se anteciparem a supostos planos
golpistas de João Goulart e seus aliados.
Setores mais lúcidos e malandros do conservadorismo (entre os quais,
obviamente, não estão correntes abertamente fascistas) até reconhecem
crimes e atropelos da ditadura. Mas a alternativa fardada é apresentada
como um demônio que a outro se contrapunha.
Os artífices desta explicação reconhecem que a truculência do diabo
verde-oliva, de posse dos aparatos de Estado, excedeu a violência de seu
inimigo vermelho. Resolvem esse detalhe, porém, valorando a sedição dos
quartéis como remédio amargo e exagerado à doença que estaria tomando
conta do corpo pátrio e se preparava para o bote final.
O roteiro se completa com uma determinada dissertação sobre os
desdobramentos de 1968, quando a ditadura impõe o Ato Institucional nº
5. Até então, segundo os teóricos das opções infernais, vivia-se período
de autoritarismo brando, que teria sido desafiado pelo surgimento da
resistência armada. O endurecimento do regime militar, assim, seria
consequência dos mau-modos da besta vermelha, que teriam provocado o
descontrole do belzebu das casernas.
Nos últimos dias, esta tese tem sido brandida por diversas vozes, com
uma ou outra variação. Está presente, por exemplo, nos editoriais da
Folha e do Estado, nos quais a mea-culpa vem maquiada e travestida por
estas supostas condições históricas. Pesquisadores mequetrefes e penas
de aluguel, da extirpe de Marco Antônio Villa, também cantam nesse coro.
Sequer um jornalista renomado como Elio Gaspari escapa da tentação de
flertar com esta interpretação fuleira.
O mais curioso são as pontes erguidas por Fernando Henrique Cardoso e
José Serra, vítimas e adversários do golpe, em direção à teoria da
dualidade demoníaca, provavelmente no intuito de manter os atuais laços
entre a nova e a velha direita, aliança que corresponde ao núcleo duro
da oposição contra os governos liderados pelo PT.
A questão central é que a ladainha dos infernos está apoiada sobre uma
dupla mentira. Não havia qualquer plano ou operação em curso, dirigida
por Jango ou os demais protagonistas de esquerda, com o objetivo de
executar as reformas prometidas por fora da via institucional e das
possibilidades previstas na Constituição. Tampouco a luta armada foi
efetivamente implementada, apesar de moralmente legítima desde o putsch militar, antes que os caminhos legais tivessem sido fechados pela decretação do AI-5.
O levante de 1964 foi urdido aos poucos, ao longo de quinze anos. Quem
estiver interessado, basta ler sobre a fundação da Escola Superior de
Guerra, em 1949, depois que o general Salvador César Obino regressa de
uma visita ao National War College, nos Estados Unidos, no alvorecer da tensão com a União Soviética.
A ESG logo se pautou pelo binômio "segurança e desenvolvimento", indo
muito além do estudo de questões corporativas. Foi sendo forjada, no seu
interior, a doutrina pela qual o salto adiante no capitalismo
brasileiro pressupunha não apenas a liquidação da esquerda como também a
derrota das correntes nacionalistas e a subordinação dos partidos
políticos da burguesia a um cesarismo de tipo militar.
Não é à toa que seus dois primeiros comandantes foram Cordeiro de Farias
e Juarez Távora. Ex-lideres tenentistas, convertidos ao conservadorismo
após a revolução de 1930, mantinham desde a época da Coluna Prestes, da
qual fizeram parte do estado maior, a convicção que a velha política
parlamentar e institucional, intrinsecamente corrupta e repartida por
interesses privados, era grande obstáculo para o avanço nacional.
Nas salas desta instituição foi sendo formada ou reciclada uma geração
de altos oficiais que mesclavam anticomunismo com uma noção de destino
sobre o papel que caberia aos militares no comando do país. Esta
oficialidade foi tecendo sua própria rede de relações internacionais,
compromissos empresariais, vínculos com os meios de comunicação e
alianças políticas.
A primeira tentativa golpista foi barrada pelo suicídio do presidente
Getúlio Vargas, que provocou intensa mobilização popular e animou
resistência de setores progressistas dentro das próprias Forças Armadas.
Levou quase dez anos para que emergisse nova conjuntura favorável ao
bonapartismo dos generais.
Os sediciosos retomaram a ofensiva na renúncia de Janio Quadros, em
1961, quando imaginaram impedir a posse do vice João Goulart, eleito
pelo voto direto e popular. Sucumbiram à Cadeia da Legalidade e às
divisões internas nos quartéis. Mas as dificuldades para consolidar a
hegemonia das forças progressistas, dentro e fora das instituições,
mantiveram abertas avenidas ao fortalecimento do golpismo.
O governo Goulart foi sabotado desde o primeiro dia, por forças locais e
internacionais. Preparava-se sua derrubada. Criavam-se adversidades,
obstáculos, impedimentos. Bloqueadas as reformas, por falta de maioria
parlamentar, a coalizão cívico-militar de direita conseguiu enfraquecer o
presidente e paralisá-lo.
Jamais esteve no cardápio de Jango, contudo, a virada de mesa. O
testemunho de Almino Afonso, ex-ministro do Trabalho, negando
taxativamente qualquer plano de "golpe comunista", é bastante
representativo do que se passava. O chefe de Estado e seus parceiros
estudavam soluções, algumas delas passavam por mudanças constitucionais,
mas nunca foi colocada qualquer hipótese de atropelar a legalidade.
Ao contrário, as críticas que cabem ao líder deposto possivelmente
seriam mais honestas se dissessem respeito à sua incapacidade ou
indisposição de recorrer a instrumentos políticos e institucionais que
poderiam derrotar a sedição. João Goulart tinha compromisso com
reformas, mas não era de sua índole ou origem de classe liderar
resistência à contra-revolução burguesa que se tecia a olhos vistos.
O que ocorreu naquele primeiro de abril foi a vitória de uma mentira que
disfarçava um plano sólido. A conquista de consenso para a modernização
conservadora, conduzida pela ditadura dos generais, passou pelo ataque
ao espantalho do autoritarismo de esquerda. A função dos meios de
comunicação, à época, era agigantar esse boneco e a situação de suposto
caos que o cercava, para justificar que as tropas tomassem as ruas e
tivessem as mãos livres para o serviço sujo.
Nesse novo primeiro de abril, depois de cinquenta anos, a teoria dos
dois demônios se presta a mesma finalidade, agora em caráter
retrospectivo. Os sócios do terror e do partido da morte, afinal,
precisam desse álibi para explicar o comportamento que tiveram naquele
momento dramático de nossa história.
Breno Altman é jornalista e diretor editorial do site Opera Mundi
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