Como homenagem a Saramago
De: Agência Assaz Atroz (PressAA) agencia.assaz.atroz.pressaa@gmail.com
Assaz Atroz
Sexta-feira, 18 de junho de 2010
José Saramago: "O que as vitórias têm de mau é que não são
definitivas. O que as derrotas têm de bom é que também não são
definitivas"
Amigos:
Acaba de falecer na manhã desta sexta-feira, dia 18 de junho de 2010,
o escritor José Saramago. Acho que não há nada que eu possa fazer para
homenageá-lo além de lhes repassar essa maravilha de discurso abaixo,
que ele proferiu ao receber o Prêmio Nobel de Literatura.
Muito sentida,
Urda Alice Klueger - BRASIL
Discurso na Academia Sueca
(ao receber o Prêmio Nobel de Literatura)
José Saramago
O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem
escrever. As quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia
ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o
campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se
alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós
maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram
vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do
Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram
analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao
ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às
pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo
das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do
enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente
de bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois
velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem
retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem,
para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.
Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor,
cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para
o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que
acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei
ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com
a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda,
a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir
para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão,
depois da ceia, meu avô me disse: "José, hoje vamos dormir os dois
debaixo da figueira". Havia outras duas figueiras, mas aquela,
certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de
sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira.
Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos
depois viria a conhecer e a saber o que significava... No meio da paz
noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e
depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu
noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo,
surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago,
como ainda lhe chamávamos na aldeia. Enquanto o sono não chegava, a
noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia
contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes
antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um
incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo
que suavemente me acalentava. Nunca pude saber se ele se calava quando
se apercebia de que eu tinha adormecido, ou se continuava a falar para
não deixar em meio a resposta à pergunta que invariavelmente lhe fazia
nas pausas mais demoradas que ele calculadamente metia no relato: "E
depois?". Talvez repetisse as histórias para si próprio, quer fosse
para não as esquecer, quer fosse para as enriquecer com peripécias
novas.
Naquela idade minha e naquele tempo de nós todos, nem será preciso
dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a
ciência do mundo. Quando, à primeira luz da manhã, o canto dos
pássaros me despertava, ele já não estava ali, tinha saído para o
campo com os seus animais, deixando-me a dormir. Então levantava-me,
dobrava a manta e, descalço (na aldeia andei sempre descalço até aos
14 anos), ainda com palhas agarradas ao cabelo, passava da parte
cultivada do quintal para a outra onde se encontravam as pocilgas, ao
lado da casa. Minha avó, já a pé antes do meu avô, punha-me na frente
uma grande tigela de café com pedaços de pão e perguntava-me se tinha
dormido bem. Se eu lhe contava algum mau sonho nascido das histórias
do avô, ela sempre me tranqüilizava: "Não faças caso, em sonhos não há
firmeza".
Pensava então que a minha avó, embora fosse também uma mulher muito
sábia, não alcançava as alturas do meu avô, esse que, deitado debaixo
da figueira, tendo ao lado o neto José, era capaz de pôr o universo em
movimento apenas com duas palavras. Foi só muitos anos depois, quando
o meu avô já se tinha ido deste mundo e eu era um homem feito, que vim
a compreender que a avó, afinal, também acreditava em sonhos. Outra
coisa não poderia significar que, estando ela sentada, uma noite, à
porta da sua pobre casa, onde então vivia sozinha, a olhar as estrelas
maiores e menores por cima da sua cabeça, tivesse dito estas palavras:
"O mundo é tão bonito, e eu tenho tanta pena de morrer". Não disse
medo de morrer, disse pena de morrer, como se a vida de pesado e
contínuo trabalho que tinha sido a sua estivesse, naquele momento
quase final, a receber a graça de uma suprema e derradeira despedida,
a consolação da beleza revelada. Estava sentada à porta de uma casa
como não creio que tenha havido alguma outra no mundo porque nela
viveu gente capaz de dormir com porcos como se fossem os seus próprios
filhos, gente que tinha pena de ir-se da vida só porque o mundo era
bonito, gente, e este foi o meu avô Jerónimo, pastor e contador de
histórias, que, ao pressentir que a morte o vinha buscar, foi
despedir-se das árvores do seu quintal, uma por uma, abraçando-se a
elas e chorando porque sabia que não as tornaria a ver.
Matéria publicada por Leda Ribeiro (Colaboradora do Blog)
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