Com a arrogância de conquistadores em território ocupado, que lembra a visita de Hitler à França, em 23 de junho de 1940, Cameron e Sarkozy estiveram esta semana na Líbia. Há alguns meses, eles, com a cumplicidade de Obama e a genuflexão da ONU, lideraram a OTAN nos ataques aéreos ao país. Kadafi é tudo o que dizem dele. Megalômano, teria ordenado o atentado contra um avião de passageiros, que explodiu sobre Lockerbie, na Escócia, e matou 270 pessoas, em 1988, além de governar o seu povo com mão pesada. Kadafi não é inocente. Mas é um erro não admitir que ele usou dos recursos naturais do país, por ele nacionalizados, a fim de dar relativo bem-estar a seus compatriotas. Não só assegurou a assistência gratuita à saúde, em qualquer caso, como garantiu a educação de todos, incluída a universidade.
Aceitar esse fato é importante, a fim de pesar as conseqüências históricas da intervenção militar estrangeira, ainda em curso. É quase certo que Kadafi não disporá de tempo, nem de espaço para uma resistência duradoura e efetiva. É sem embargo prudente considerar que o vasto território líbio, que se estende pelo amplo deserto ao sul, foi apenas tocado, em seu litoral, pela supremacia dos meios bélicos estrangeiros. Se Kadafi se encontra sob a proteção de chefes tribais, encontra-lo nos areais do Saara será mais difícil do que localizar uma agulha no palheiro. Ele, que é ainda relativamente moço, terá condições – se contar com essa proteção política atávica – de iniciar operações de guerrilha contra os seus sucessores, com resultados imprevisíveis.
Nesse momento, e apenas nesse momento, Sarkozy e Cameron se sentem vitoriosos. Posam de condôminos dos Estados Unidos na aspiração imperial, e crêem que podem, em pouco tempo, liderar nova repartição colonial da África, como a ocorrida em Berlim, em 1884/85. Naquele tempo, a China estava de joelhos, a Rússia mergulhada no desatino dos Romanov, e os Estados Unidos mal iniciavam o seu projeto de expansão mundial. Com isso, Sarkozy e Cameron acreditam também injetar um pouco de oxigênio em seus países, que passam por crise econômica, política e financeira grave, em decorrência da subordinação de seus governos aos interesses dos grandes bancos europeus. Mas, como nos belos versos de Cazuza, o tempo não pára, e o futuro costuma repetir o passado.
Os dois líderes, com seu sorriso, que tudo indica ser provisório, estão felizes. Lideraram uma coalizão que tinha como propósito salvar vidas inocentes no confronto entre rebeldes e o governo – e fizeram, com sua intromissão nos assuntos internos de um país até então soberano, mais de vinte mil mortos. Para defender os direitos humanos, eliminaram os titulares de tais direitos que anunciavam garantir. Se não se tivessem envolvido no conflito, provavelmente não haveriam tantos mortos, mas não poderiam, agora, reivindicar a repartição do petróleo líbio - antes que possam repartir também o fosfato e outros minerais. Daí sua equivocada alegria.
O artigo 2º da Carta das Nações Unidas, estabelece que as relações entre os países devem obedecer aos princípios da igualdade de direitos e de respeito à autodeterminação dos povos. O bom senso, mais do que até mesmo os compromissos éticos – se os houvesse nas relações internacionais – recomendaria a não intervenção nos assuntos internos das comunidades políticas soberanas, qualquer que fosse o pretexto. Isso não ocorre. A não intervenção é uma retórica da hipocrisia, que tem sido violada sempre que é de interesse das nações mais bem armadas. Não há só hipocrisia, mas sobra o cinismo, como no caso líbio: para “proteger” os presumidos direitos humanos violados, as armas dos interventores mataram milhares de inocentes – e ainda mantêm o discurso que, com os resultados sabidos, passa a ser abjeto.
É da elementar compreensão da Realpolitik que uma rebelião armada contra qualquer governo seja reprimida pelo poder constituído. O governo de Kadafi era legitimado pelo consentimento dos líbios. Se eles se rebelaram contra esse poder, e se Kadafi reagiu com suas forças armadas, o conflito deveria ter sido resolvido sem qualquer intervenção externa. Provavelmente o descontentamento contra Kadafi e o seu desgaste pela longa permanência no governo absolutista, levassem os rebeldes à vitória, que seria legítima. E esses rebeldes, sem qualquer intervenção externa, reorganizariam, como bem entendessem, sua sociedade política. No momento em que sua aparente vitória se deve a forças externas, ela é frágil e pode ser provisória.
Cameron e Sarkozy, de acordo com alguns observadores, estiveram na Líbia a fim de contrapor-se à presença e provável influência de Erdogan no país. Ninguém sabe, exatamente, o que os membros do instável Comitê Nacional de Transição pensam dos problemas regionais (neles, o conflito entre Israel e a Palestina, a situação da Síria e do Irã, a alentadora dúvida da Arábia Saudita e os interesses estratégicos da Rússia e da China no Mediterrâneo), mas é natural que ouçam o premier turco, que representa um país com forte presença islâmica. Há a possibilidade de que o novo governo líbio, constituído de rebeldes, não venha a ser mero delegado dos estrangeiros, e assuma postura independente. Para isso contam com a simpatia das novas potências mundiais, como a Rússia – que pediu à ONU o fim da intervenção aérea no país - e a China.
Mais uma vez, na História, a paz do mundo depende do Mediterrâneo, esse lago que une os três maiores continentes do planeta.
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