Gilberto Maringoni
Vamos combinar: a administração Alckmin atingiu seu objetivo. Desocupou a
força o bairro Pinheirinho, em São José dos Campos, desalojando cerca
de seis mil pessoas. Através de uma guerra de liminares, contornou um
imbróglio de competências jurídicas e legalizou a brutalidade contra
setores pobres da população (mais uma vez). Fez um cálculo político:
estamos a nove meses das eleições, tempo suficiente para que cenas de
mães correndo com filhos nos braços, policiais espancando crianças e
incêndios e tratores dando cabo de moradias sejam esquecidas pelo
eleitorado. No jargão da Polícia Militar, a operação foi um sucesso.
Mas o governo do Estado de São Paulo parece estar perdendo a batalha de
comunicação. O presidente interino do PSDB, Alberto Goldmann, acusa o
golpe de forma clara, em nota oficial de seu partido. Logo de saída, ele
ensaia um ataque:
“O cumprimento da decisão judicial fez com que o PT movimentasse
todos seus tentáculos políticos e sua máquina de desinformação, com o
intuito de atingir três metas: culpar o Governo do Estado pelo fato,
caracterizar como de extrema violência a intervenção policial no local e
se apresentar como paladino da justiça social, fazendo falsas promessas
e criando expectativas irreais para os moradores do local”.
Goldman tenta reduzir o caso a uma querela político-partidária. “Todos
os tentáculos” se refere, obviamente, à impressionante difusão que o
caso ganhou nas redes sociais e em toda a internet, não apenas por
possíveis petistas, mas por gente cujo elo de ligação maior era o
espanto com o ocorrido.
No fim do texto, o dirigente tucano tenta eximir seu governo de qualquer responsabilidade:
“O governo de São Paulo agiu em cumprimento de determinação do
Judiciário, e a operação foi comandada diretamente pela Presidência do
Tribunal de Justiça paulista”.
Tudo certo. Nada aconteceu por vontade do governador. Houve apenas o
cumprimento de uma decisão “técnica” e “racional” para que as coisas
voltassem à sua ordem natural. Algo impessoal e asséptico.
Não é com ele
O PSDB exibe aqui a mesma defensiva que pauta a agremiação quando o
assunto é a política de privatização dos anos 1990. Ao longo daquela
década, os líderes do PSDB – como bem mostra Amaury Ribeiro Jr. em “A
privataria tucana” – posavam exultantes ao lado dos martelinhos dos
leilões com os quais eram vendidas as estatais.
Passada a euforia, após a abrupta desvalorização do real em 1999, o
partido mostrou-se hesitante e mesmo envergonhado para defender a
acelerada alienação do patrimônio público nos governos de Fernando
Henrique Cardoso.
Isso ficou claro nas campanhas presidenciais de 2006 e 2010, quando os
candidatos Geraldo Alckmin e José Serra foram acuados por Lula e Dilma
Rousseff, que repetiram o tema até constranger seus oponentes. O atual
governador de São Paulo chegou a ostentar na TV um ridículo jaleco
salpicado de logotipos de estatais para demonstrar seu amor às empresas
públicas. (É bem verdade que para isso, o PT, que agora defende a
privatização de aeroportos, lançou mão de eficiente cara de pau diante
do eleitorado. Tudo bem, faz parte do show).
As privatizações se constituem em outro caso claro de vitória operacional que se transformou em derrota política.
Amaury Ribeiro Jr. assinalou isso em um concorrido debate para o
lançamento de seu livro na tarde desta quarta (25), no Fórum Social
Temático, em Porto Alegre. “Fiquei me perguntando por que um livro sobre
as privatizações, um tema da macroeconomia, vendeu tanto e sensibilizou
tanta gente em todo o Brasil”, disse ele logo de início. Em seguida,
emendou: “É porque a venda das estatais afetou a vida de milhares de
pessoas, não apenas daquelas que trabalhavam e foram demitidas das
companhias, mas daquelas que acreditaram nas promessas de que o país
melhoraria com os leilões”.
Amaury certamente conhece uma pesquisa realizada em 2007 pelo jornal O Estado de S. Paulo sobre o assunto. Ela constatava que “A maioria do eleitorado brasileiro (62%) é contra a privatização de serviços públicos”.
Poder de fogo
A chamada “batalha da comunicação” faz parte de uma aguda disputa de
idéias na sociedade, difícil de ser levada adiante por conta da
diferença do poder de fogo dos meios de comunicação. Ela pode expor de
forma nítida que concepções ou projetos de sociedade cada setor deseja
concretizar.
Provavelmente a idéia de Geraldo Alckmin é que os seis mil moradores do
Pinheirinho, por não terem acesso à mídia, não causariam maiores
problemas de imagem à sua gestão. Desocupações sustentadas pela polícia
ocorreram às dezenas antes, sem que houvesse eco na opinião pública.
Além disso, não seria difícil vincular aos moradores a imagem de
baderneiros, violadores do direito à propriedade e marginais. Para uma
classe média conservadora, leitora de “Veja” e que detesta pobre, não
haveria problema algum em descer o tacape nos miseráveis. Nunca é demais
lembrar que o massacre do Carandiru, que completa vinte anos no segundo
semestre, foi saudado à época por largas parcelas da população, que
chegou a eleger o comandante da operação como deputado estadual. E que
investidas policiais contra os sem-terra sejam volta e meia aplaudidas
por expressivos setores da opinião pública.
No caso atual, não apenas há imagens dramáticas, como há o fator
internet. As cenas de espancamentos no Pinheirinho adquiriram quase que
um caráter viral na rede. Disseminaram-se sem controle, colocando o
governo estadual e a direção do PSDB na defensiva.
Não há ainda pesquisas sobre as impressões da população diante do caso.
Pode ser que uma maioria ainda apóie a ação oficial. Mas o quadro
tendencial é de desgaste crescente.
O conservadorismo tucano parece ter encontrado seus limites. Enquanto
suas iniciativas no terreno da segurança pública conseguiam ser
enquadradas no guarda chuva genérico de se garantir a “tranqüilidade da
população” ou de se manter a previsibilidade sobre a ação policial
(“bandido bom é bandido morto”, “a lei tem de ser respeitada”, “polícia
boa é polícia dura” etc.), tudo ia bem. Mas quando há excessos, que
revelam ações desmedidas e causadoras de sofrimentos desnecessários, o
apoio à truculência deixa de ser incondicional.
E é aí que se começa a perder a batalha de idéias.
Batalha de idéias? Em outros tempos a pendenga era chamada por seu nome
correto: luta ideológica. Essa do Pinheirinho é das boas.
Truculência tem história
Só a título de curiosidade: a política higienista empreendida pelo
governo do Estado no Pinheirinho e da prefeitura na Cracolândia tem
antecedentes ilustres.
Em 1914, o então prefeito de São Paulo, Washington Luís (que viria a ser
presidente da República, usou as seguintes palavras para justificar a
violenta expulsão da população pobre da Várzea do Carmo para a
construção do parque D. Pedro, no centro da capital:
“O novo parque não pode ser adiado porque o que hoje ainda se vê, na
adiantada capital do Estado, a separar brutalmente do centro comercial
da cidade os seus populosos bairros industriais, é uma vasta superfície
chagosa, mal cicatrizada em alguns pontos e ainda escalavrada, feia e
suja, repugnante e perigosa, em quase toda a sua extensão (...). É aí
que, protegida pela ausência de iluminação se reúne e dorme, à noite, a
vasa da cidade, numa promiscuidade nojosa, composta de negros
vagabundos, de negras emaciadas pela embriagues habitual, de uma
mestiçagem viciosa, de restos inomináveis e vencidos de todas as
nacionalidades, em todas as idades, todos perigosos (...). Tudo isso
pode desaparecer sendo substituído por um parque seguro, saudável e
belo. Denunciando o mal e indicado o remédio, não há lugar para
hesitações, por que a isso se opõem a beleza, a higiene, a moral, a
segurança, enfim, a civilização e o espírito de iniciativa de São
Paulo.”
Tirando uma palavra ou outra, parece discurso proferido pelas atuais autoridades paulistas.
Gilberto Maringoni,
jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e
intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).
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