Por Mair Pena Neto
Que São Paulo está politicamente deslocado do Brasil, todos já
sabem. Porém, os sinais de doença social que vêm da maior cidade do
país, aquela que deveria ser a nossa síntese, mas que se perdeu no
caminho, são preocupantes. Do elitismo desenfreado, que rejeita estações
de metrô em certos locais para evitar contato com "gente diferenciada",
à ação truculenta do Estado na administração dos conflitos, seja de que
natureza for, São Paulo externa tudo o que temos de pior e que
precisamos rejeitar a cada dia para nos tornarmos um país cidadão.
Chega a parecer fora da realidade que estejamos nos deparando com uma
política pública de um estado brasileiro de tratar um dos maiores
flagelos sociais, o vício do crack, infligindo "dor e sofrimento".
Devastados pela droga, os usuários, entre os quais mulheres e crianças,
são tratados a bombas e tangidos como gado, de lá para cá, sem que se
lhes aponte uma alternativa ou forma de tratamento.
Se alguma coisa acontecia no coração do compositor quando cruzava a
Ipiranga e a Avenida São João, agora ele se depararia com hordas de
zumbis, tratados a ferro e fogo por ordem do estado. Uma cena de
envergonhar qualquer pessoa com um mínimo de sentimento de humanidade.
E, ao menos até o momento, foram poucas as vozes que se levantaram
contra a atrocidade. O silêncio de São Paulo diante da chacina do
Carandiru está se repetindo. A cidade se mostra mais uma vez fria e
indiferente ao destino dos desvalidos. Algumas reclamações devem surgir
porque no ataque à Cracolândia, os dependentes já chegaram a
Higienópolis, o higienista bairro da elite paulista que não gosta de
quem não é da elite.
São Paulo resvala para o fascismo como estado policial. Para todos os
seus problemas, a solução é a polícia. Sejam estudantes da USP,
viciados em crack, e até mesmo os policiais quando se manifestam por
melhores salários. O remédio é a força, que nada resolve. Essa política
gera abuso sobre abusos. Como o do policial militar que em meio a uma
conversa com estudantes da USP parte para cima de um deles e o agride
com tapa no rosto e chega a puxar a arma diante do início de tumulto. E
isso numa sala tranquila, com meia dúzia de pessoas. Imagine o
comportamento desse policial em meio a um conflito de grandes
proporções?
A maior metrópole do país vive em estado de neurose permanente.
Condomínios nos bairros nobres determinam revistas aos próprios
moradores. Já não basta viver trancafiado entre grades, distante da vida
real, numa forma de convivência que é gênese de anomalias sociais. É
preciso assegurar que se está seguro. E isso significa revistar os
próprios vizinhos. O marido que provocou um acidente na noite do
reveillon, matando sua mulher e o bebê que ela esperava, alega que
avançou o sinal fechado por medo de um assalto. Verdade ou não, seu
depoimento soa verossímil aos que vivem o clima de pavor que domina a
cidade.
O estágio de insanidade e truculência de São Paulo nos pede uma
reflexão. A cidade é parte de nós e, talvez, nosso maior espelho. Se o
que há de desumano em nós se revela ali é para lá que temos que nos
voltar agora. Para debater, ouvir, cobrar e propor mudanças que ajudem a
transformar uma realidade que entristece a todos os brasileiros.
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