Mao Tsé-Tung, principal líder da revolução chinesa, foi indagado por um
repórter estrangeiro, logo após a vitória dos comunistas na guerra
civil, qual a opinião sobre a Revolução Francesa de 1789. O líder
comunista, mais de cento e cinquenta anos depois, responde que “ainda
era muito cedo para avaliar”.
Fico pensando comigo mesmo se tão acentuada cautela não deveria ser
usada quando me perguntam qual a consequência do Julgamento do Mensalão.
Afinal de contas, com o processo sem o trânsito em julgado e com
decisões incidentais que se darão ao longo deste ano, e eventualmente do
próximo, melhor seria nos calarmos. Ademais, acompanhei o julgamento de
longe. Não li o processo e somente recebi, como todos os brasileiros,
informações diuturnas pela imprensa. Enfim, falar agora sobre o tema
pode parecer, aos olhos orientais, altamente imprudente. Embora cedo
para avaliar, vou correr o risco.
Não vendo o julgamento como operador do direito, mas como cidadão,
qualquer pessoa há de ficar feliz com as sentenças condenatórias. Afinal
de contas, creio que todo cidadão consciente luta para que a corrupção
seja combatida com rigor, e que eventuais corruptos sejam
responsabilizados e, não importando quem sejam eles, sejam punidos. É
isso o que um cidadão comum diria se não tivesse lido uma linha sobre o
tema e avaliasse somente dois momentos: o primeiro, a longínqua acusação
de corrupção; o segundo, a simples condenação dos acusados.
Já como jurista e cidadão, analiso o papel da instituição, bem como o conteúdo da decisão e sua consequência.
A euforia midiática mostrou sem véus o papel que os magistrados
desempenharam. Alguns foram promotores, outros advogados, outros até
juízes, além daqueles que foram repórteres investigativos ou jornalistas
de costumes nas horas vagas. Todavia, o que mais me surpreendeu foram
aqueles que se apresentaram como justiceiros. Essa preocupante atitude
causou perplexidade à comunidade jurídica e à população. Todos nós,
acostumados ao temor reverencial que nutrimos pelos homens de toga, beca
ou batina, pessoas no passado recente consideradas como iluminadas por
Deus, vimos uma irritante natureza humana nos atos desses profissionais.
Brigas comezinhas, pitos bilaterais, ofensas veladas ou abertas,
advertências, saídas do plenário em protesto contra o arbítrio de um ou o
abuso verbal de outro. Quiprocós não faltaram. Nem chiliques. Enfim, em
um clima de assembleia condominial que decide uma polêmica obra, os
condôminos, digo, os magistrados externavam clara e francamente a ira, a
vaidade e outras vicissitudes humanas. Despida a toga, vimos que
aqueles que pensávamos ser verdadeiros reis estavam nus!
Nada de importante, se não fosse a mais alta Corte do País.
Aqui e acolá registrei, da minha distância, minha surpresa. Pedia-se a
procedência ou improcedência da ação e não do pedido. Não se sabia qual a
lei em vigor para se fazer o cálculo penal. Magistrados calejados
quiseram condenar os imputados a uma pena de multa, não prevista na lei,
em flagrante desconhecimento do artigo inaugural de nosso Código Penal
que consagra o princípio da legalidade. O procedimento trifásico do
cálculo penal foi ignorado, bem como toda a jurisprudência garantista
que envolvia a matéria e que foi construída, fundamentalmente, pelo
próprio Supremo Tribunal Federal. Enfim, nada dignificante para uma
Corte Superior. Se é verdade que quem erra por último é o Supremo,
segundo a lição inesquecível de um velho ministro, os erros não passaram
despercebidos e, lamentavelmente, foram exemplares.
Não bastasse isso, toda a teoria do domínio do fato foi
descontextualizada. Há mais de 70 anos, ainda nos anos 30, Hans Welzel,
um jovem professor alemão, propôs uma importante modificação na teoria
do crime. Chamou a mudança de teoria finalista da ação. Com esteio no
pensamento filosófico de Nicolai Hartmann e na fenomenologia de Edmund
Husserl, condicionou a existência do crime a um ato teleológico humano.
Não bastaria um nexo de causalidade, então suficiente para a consagração
de um delito. Necessitava-se mais. Como o crime era um ato humano,
exigia-se um telos, um fim que se pudesse atribuir ao seu autor. Não por
outra razão a teoria se chamou finalista.
O corolário desse pensamento era uma restrição à imputação de um fato a
seu autor. Não bastaria somente a relação de causa e efeito, importada
das ciências duras, pois uma razão humana era necessária. E essa razão
humana deveria anteceder a exteriorização da conduta que se
consubstanciaria em crime. Assim, segundo Husserl, “toda a consciência é
a consciência de alguma coisa” – e no Direito Penal é a consciência de
um ato previamente concebido a desrespeitar uma norma proibitiva. Ainda
segundo ele, somente o ser humano pode decidir de que forma pretende
estar no mundo, sobretudo quando aprende a se dar conta de que ele está
aberto no mundo, e de que o “mundo” são todas as possibilidades. E é
diante delas que os seres humanos são ou deixam de ser, tornam-se e se
transformam, exercem seus sonhos e desejos, vivem ou desistem de viver,
fazem-se dignos ou simplesmente rastejam como animais invertebrados.
Qual a consequência prática deste pensamento? Temos uma restrição do
sistema de punições. Depois do advento do finalismo, não se pune somente
com o nexo causal, pois há que se demonstrar a existência prévia do ato
teleológico. Vale dizer, temos uma primeira grande diminuição do
sistema punitivo, já que uma exigência mais estrita se soma a um
universo causal mais aberto.(1)
A teoria não se fez de um ato só, de um momento só. Foi sendo criticada e
reelaborada ao longo dos anos. Aprofundamentos e ramificações nascem
dela. No plano da autoria, pensa-se na teoria do domínio do fato
(pareceu-me no julgamento que a ideia tenha sido manuseada por pessoas
que não tinham perfeito domínio da teoria, mas vou adiante). Isto é, só
poderá ser considerado (co)autor do delito aquele que tiver um domínio –
final – do fato. Em palavras simples, a teoria exige que um ato causal
possa ser dominado ou dominável pelo seu autor. Se assim não for, autor
não é.
Por tudo isso, quando um ministro afirma que “apesar de não existir
provas para condenar, ele ainda assim condena porque a literatura o
autoriza” (seja lá que diabos isso signifique), estamos diante de um
magistrado draconiano que, basicamente, lembrando Maquiavel, assevera
que os fins justificam os meios. Não importa a inexistência de provas, o
que importa é o exemplo que se conseguirá com a decisão. “Às favas,
pois, com todos os escrúpulos de consciência”, como diria Jarbas
Passarinho, prócer da Ditadura ao assinar o AI-5, o que vale é a
condenação e seu exemplo.
Pois bem, temos uma condenação ou, quiçá, várias. Todas exemplares.
Esperamos que sirvam de efeito dissuasório para o cometimento de novos
atos de corrupção, ainda que os cientistas do Direito não tenham
empiricamente conseguido demonstrar tais efeitos preventivos. O que se
teme, no entanto, já que se está a falar de exemplos, é o que um juiz
iniciante pensará, no interior do Brasil, ao começar sua carreira de
magistrado em uma pequena comarca, deparando-se com um crime que ele
julgue grave. Aplicará uma teoria que restringe a punição, como a
finalista, ou a adotará, em evidente contradição lógica, para
fundamentar qualquer sentença condenatória? O Supremo Tribunal, que olha
menos o fato e mais a defesa da Constituição, olhou para os crimes do
mensalão como um juiz iniciante que se vê pressionado por um crime
grave. Deu um exemplo a todos os magistrados do país: “condenem, ainda
que sem provas, pois o povo apoia e isso basta”. Às favas com os
procedimentos, pois o que vale é o resultado final, o que vale é darmos
um exemplo.
O processo do mensalão foi usado para atemorizar os outros. Não me
parece razoável usarmos seres humanos, corruptos ou não, detestáveis ou
não, para dizer que a “partir de agora é pra valer”. Exemplos podem ser
usados com cobaias, não com pessoas. Parece-me que os fins justificaram
os meios. E, agora, aquele juiz hipotético, da comarca hipotética, de um
crime grave hipotético que aflige – hipoteticamente – a comunidade,
poderá julgar com os fins, e não com os meios.
De fato, o julgamento foi exemplar!
Em tempo: o título não é um xingamento, somente afirma que nada do que é
humano nos é estranho. Ou, trocando em miúdos, eu lamentavelmente já vi
esse filme.
Nota:
(1) Depois do auge da discussão finalista, outras linhas de pensar
floresceram, como o funcionalismo contemporâneo, e que melhor expressam a
discussão, de outra perspectiva, sobre o mesmo tema. Nova visão, também
restritiva, é produzida com a teoria da imputação objetiva. Mas esta é
uma outra estória, que fica para outra vez.
Sérgio Salomão Shecaira
Professor titular de Direito Penal da USP.
Ex-presidente do IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e do CNPCP - Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária.
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