Qualquer
cidadão minimamente informado sabe que o Estado Democrático de Direito é
aquele pelo qual os poderes públicos estão regulados por leis, ou seja,
a sociedade é governada de forma tal que ninguém está acima das leis do
país.
No Estado Democrático de Direito, a fim de impedir o exercício ilegal do
poder e o abuso de poder, a Constituição (a carta política de uma
nação) estabelece a divisão de poderes, divisão esta que estabelece
competências e prerrogativas próprias dos poderes Legislativo, Executivo
e Judiciário.
Tal divisão se dá em razão de suas funções, poderes independentes e
harmônicos entre si. Trata-se aqui da adoção do sistema de freios e
contrapesos. Há um poder soberano, mas este é dividido nas funções
Executiva, Legislativa e Judiciária.
O sistema de divisões de poderes, deste modo, cria mecanismos de
controle recíproco sem o qual não haveria garantia de conservação do
Estado Democrático de Direito.
Se há um poder soberano dividido em funções, de onde surge tal poder? O
Artigo 1º, Parágrafo Único da Constituição Federal de 1988, que é a
Carta Política do país, diz: “Todo o poder emana do povo, que o exerce
por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta
constituição”.
Dizer que o poder “emana do povo” significa que a fonte do poder é o
povo, provém exclusivamente do povo, que não o exerce diretamente, mas
através de representantes eleitos. Infere-se aqui o princípio da
soberania popular, onde cabe ao cidadão escolher os destinos da nação.
No exercício de sua cidadania o indivíduo exerce o direito de votar, ou
seja, soberania popular e cidadania são termos indissociáveis.
Dizer também que o poder “emana do povo” significa que as leis do país
são feitas pelo poder eminentemente político que representa o povo, que é
o poder Legislativo, o parlamento.
Apesar da divisão dos poderes, pela qual nenhum poder pode se sobrepor
ao outro, o que seria uma invasão de competência, usurpação e abuso de
poder, numa verdadeira democracia o poder mais importante, no sentido de
que é aquele que tem legitimidade de falar em nome do povo, é o poder
Legislativo, onde as decisões são tomadas em seu nome.
Desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, chamada por Ulisses
Guimarães de “Constituição cidadã”, o Brasil inicia um período
verdadeiramente democrático, após 21 anos de ditadura militar sob um
regime de exceção.
A democracia, como sabemos, é o regime político onde a regra da maioria
prevalece. Isso não significa que numa democracia a maioria se
sobreponha em direitos sobre as minorias, mas que no jogo político
democrático prevalece a decisão da maioria.
No Brasil, uma democracia representativa sob o Estado Democrático de
Direito, o/a presidente e os parlamentares nas diferentes esferas
(federal, estadual e municipal) são eleitos e os magistrados são
concursados ou nomeados, como é o caso dos ministros do STF, a mais alta
corte de justiça do país, ou “última instância” do poder Judiciário,
que exerce uma parcela do poder político, pelo princípio da separação
dos poderes.
Todavia, este é um poder exercido por agentes não eleitos pelo povo.
Juízes de instâncias inferiores ou ministros do STF, exercem uma parcela
do poder político no desempenho de sua jurisdição. Há algo que é
inseparável do órgão de jurisdição: a imparcialidade do juiz.
É a imparcialidade a primeira condição para que o magistrado possa
exercer sua função dentro de um processo, quando o juiz coloca-se entre
as partes e acima delas.
O pressuposto para que a relação processual seja válida é a
imparcialidade do juiz. Um julgamento justo, portanto, depende da
imparcialidade daquele que julga respeitando as partes, ou seja a defesa
e o contraditório.
Com a promulgação da Constituição Federal de 1988 fechamos o ciclo do processo de redemocratização.
Nossa Constituição propiciou oportunidades para que os cidadãos tivessem
mais acesso à justiça, por exemplo, com a criação do Juizado de
Pequenas Causas.
Passamos da ditadura para uma “era dos direitos”. Isso, por outro lado,
propiciou aquilo que chamamos “judicialização das relações sociais”.
Conflitos de natureza pública e privada são cada vez mais solucionados na esfera do Poder judiciário.
Ocorre que nos últimos tempos os conflitos que deveriam ser resolvidos
na esfera política, pela via da negociação democrática, pelo diálogo,
são levados ao Poder Judiciário, o que confere aos juízes um poder
questionável uma vez, que além de não serem representantes eleitos pelo
povo, isso judicializa a política quando, por exemplo, a minoria
inconformada com a decisão da maioria bate às portas dos tribunais para
vencer no poder Judiciário o que não consegue no parlamento, a esfera
propriamente política.
Cada vez mais podemos observar juízes sendo interpelados por políticos e
pela mídia, ora para decidir, ora para opinar questões que não deveriam
ser tratadas nos tribunais.
Estamos vendo a própria política sendo levada ao banco dos réus, como
ocorreu com o julgamento da Ação Penal 470, chamada pela mídia como
“mensalão” do PT, o “maior julgamento da história”, e o “maior escândalo
de corrupção deste país”, conforme afirmou o Procurador Geral da
República Roberto Gurgel no primeiro dia de um julgamento realizado em
pleno período de campanha eleitoral, quando todos os julgamentos daquela
corte foram suspensos para atender aos “apelos da sociedade”, como
propagava a mídia.
Roberto Gurgel chegou a declarar na mídia que “seria bom que o julgamento refletisse nas urnas”.
Durante todo o julgamento, televisionado e transmitido ao vivo, víamos
comentaristas afirmando que o STF, através do julgamento do “mensalão”,
estava iniciando uma nova página da história da política deste país
“acabando com a impunidade” e com a corrupção.
Não é preciso repetir aqui algumas frases de discursos de alguns
ministros que, ao julgar réus de uma ação penal, não se furtaram de
julgar um partido político e a própria atividade do parlamento,
arvorando-se menos em guardiães da Constituição do que em guardiães da
ética.
A mídia, em geral, declaradamente oposicionista em relação ao governo da
presidenta Dilma, pressionou o STF para que o julgamento fosse
realizado durante a campanha eleitoral, transformando o mesmo num
espetáculo e, em nome da “liberdade de imprensa”, promoveu o linchamento
moral dos réus, especialmente os do núcleo político, violando
frontalmente o princípio constitucional da presunção de inocência.
Aliás, desde 2005, quando Roberto Jefferson fez a denúncia de um suposto
esquema de compra de votos que ele chamou de mensalão, a mídia passou a
tratar todos os acusados de “mensaleiros”. Todos presumidamente
culpados, condenados por antecipação.
O que ficou muito claro durante a realização o julgamento da AP 470 em
plena campanha eleitoral, atendendo aos “apelos” de certa mídia que se
arvora em ser representante do povo quando se pretende “portadora dos
anseios da sociedade”, não foi outra coisa senão a relação promíscua
entre a mídia, através de certos jornalistas, e o STF.
Pois bem, passados dois meses do julgamento da Ação Penal 470, o
jornalista Merval Pereira das Organizações Globo lançou nesta semana um
livro chamado “Mensalão”, com prefácio de Ayres Brito. Ora, o indivíduo
que era o presidente da suprema corte do país prefaciando um livro sobre
um julgamento que ainda nem teve seus acórdãos publicados?
Além disso, ainda cabe recurso em alguns casos, pois a ação ainda nem
transitou em julgado. Para quem proferiu tantos discursos em nome da
necessidade da “ética na política” durante o julgamento, isso é, no
mínimo imoral, tendo em vista que o livro em questão não é jurídico, mas
uma compilação de artigos de opinião de um jornalista publicados em
jornal durante o período do julgamento.
Eis aí os indícios de uma verdadeira parceria público/privada entre um
ministro do STF e mídia, a voz da oposição neste país. Uma relação, no
mínimo, promíscua em termos democráticos e republicanos.
Pensava-se que não poderia haver nada mais indecoroso do que o
comparecimento do ministro Gilmar Mendes ao lançamento do livro “O país
dos Petralhas II”, de um blogueiro da revista Veja em pleno julgamento
da AP 470. Todavia, agora há que se indagar sobre quem agiu de forma
mais imoral.
De um, esperava-se que em nome da imparcialidade do julgador que não
comparecesse naquele momento a um evento para privilegiar o lançamento
de um livro cujo título por si só já diz para que serve, por mais que
seja amigo do autor.
Do outro, esperava-se pelo menos a dignidade de esperar o trânsito em
julgado de uma ação penal da qual foi um dos julgadores. A conduta de
ambos coloca sob suspeita a imparcialidade na condição de magistrados.
Parafraseando aquele ditado sobre a mulher de César, aos ministros de
uma corte suprema de justiça não basta a exigência de imparcialidade. É
preciso que pareçam imparciais.
Em tempos de judicialização da política, quando a mídia se coloca não no
papel de fiscalizadora da política, a serviço da democracia, mas da
oposição, que é a minoria, fica muito claro que estamos diante de uma
nova estratégia de luta política que envolve não apenas partidos
políticos mas os meios de comunicação e o poder Judiciário.
Num Estado Democrático de Direito quem fala em nome do povo e quem
decide os rumos do país são seus representantes eleitos. Não é este o
caso do Poder Judiciário. Tampouco o da mídia.
Disputas políticas não podem, numa democracia, serem travadas sob o
pretexto de uma pretensa “faxina moral” quando corruptos são sempre os
adversários políticos. A política não pode ser julgada exclusivamente
com critérios jurídicos e morais, mas políticos, porque Direito, Moral e
Política são intercambiáveis, mas não se confundem.
Já vivemos num tempo em que tudo era política. Hoje, ao que parece,
vivemos num tempo em que tudo é moral. E quando a moral, que não se
confunde com a ética, quer substituir a política sabemos muito bem aonde
isso pode chegar.
Maria Luiza Q. Tonelli, advogada, mestre e doutoranda em Filosofia pela USP, com pesquisa sobre judicialização da política e soberania popular
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