Politicamente, analfabetos disfuncionais
Por Maria
Fernanda Arruda em agosto 21, 2015
Um brasileiro, em fins do século XIX, competente para ler e
escrever, seria um nobre ou até um coronel da Guarda Nacional. Na virada do
século, éramos 35% de alfabetizados e, em 1950, apenas 49%. O Brasil somente
não foi mais paupérrimo na manipulação das letras e dos números quando a
população deixou os campos e chegou às cidades: em 1960, os brasileiros
alfabetizados já somavam 60%. Agora, nos nossos tempos, teremos apenas 8% de
analfabetos nacionais? Motivo de orgulho? Não. Esse número, apontado e avalizado
pelo IBGE, é uma lastimável balela.
A iniciativa de criar um Indicador Nacional de Alfabetismo
Funcional no Brasil, medindo diretamente as habilidades da população por meio
de testes, foi tomada por duas organizações não-governamentais: a Ação Educativa
e o Instituto Paulo Montenegro. As pesquisas que passaram a ser feitas,
utilizado o conceito de alfabetismo funcional mostram qual é o quadro real:
atinge cerca de 68% da população; somados aos 8% da totalmente analfabeta,
resultando em 76% da população que não possui o domínio pleno da leitura, da
escrita e das operações matemáticas, ou seja, apenas um em cada quatro
brasileiros (25% da população) é plenamente alfabetizado.
Agora sim, fica viável entender as manifestações lastimáveis
promovidas nos protestos, aqueles que querem a deposição do governo
democrático, a volta da ditadura militar e mais:a morte dos que consideram como
seus grandes inimigos. O survey (sondagem de opinião, sem
rigorismos estatísticos) realizado por um professor da USP permite o desenho do
perfil desse povo, o que é razoavelmente evidente. Trata-se de uma maioria
absoluta de indivíduos brancos, com a exclusão de negros e de pobres, gente de
faixa etária mais alta, vários tendo chegado à senilidade, muitas
mulheres, voyeurssedentos de corpos nus, vendedores ambulantes em
trabalho, diversos interessados na carteira e no celular alheios.
Os depoimentos colhidos dessa gente são inacreditáveis,
decretando a obsolescência definitiva do Festival da Besteira que Assola o País
(Febeapa), obra muito interessante e que retrata as cabeças de generais,
coroneis, almirantes e brigadeiros, mentores da ditadura (golpe de 64), mas que
se reveste de candura infantil diante da produção que se faz e mostra, na
avenida Paulista dos dias atuais. As faixas transportadas pelos “mulas”
contratados trazem dizeres sem sentido, escritos em língua que identifica o
analfabetismo funcional predominante. Mas não estamos tratando de um segmento
social e economicamente privilegiado? Sim, estamos. E as pesquisas também
mostram que 38% dos nossos universitários gozam dessa condição: são analfabetos
funcionais.
O projeto de massificação do ensino foi parido pela
ditadura, sob orientação do Coronel Jarbas Passarinho, com o malfadado MOBRAL,
enquanto o ensino de História e outras ciências sociais era substituído por
aulas de “educação moral e cívica”. Tempos de “Brasil – ame-o ou deixe-o”,
recitado nas aulas obrigatórias de educação física. A ditadura formou milhares
e milhares de jovens alienados, coerentes, e que hoje são fascistas. Uma
geração de intelectuais que estudava o Brasil foi levada ao ostracismo: Caio
Prado Junior, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Celso Furtado,
Antônio Cândido, Florestan Fernandes.
O cinema nacional ficou reduzido à produção de pornochanchadas,
o teatro foi transformado em forma de lazer que antecede a pizza do sábado à
noite, em que pesem os esforços magníficos de Gianfracesco Guarnieri, Zé Celso,
Vianinha, Ruth Escobar e outros. A música foi proposta na forma alienadora da
“jovem guarda”, perdida nas curvas das estradas de Santos, embora, e exatamente
aí, tenha havido a contestação mais séria à violência: Chico Buarque foi o
maior exemplo de como a sensibilidade artística e a inteligência cultivada
podem ridicularizar a violência dos torturadores assassinos.
O segundo momento de aviltamento do ensino no Brasil veio
com os oito anos FHC.
Da mesma forma que privatizaram as empresas do Estado,
privatizou-se o ensino. A universidade federal foi empobrecida em quantidade e
qualidade; o MEC orientou para que as escolas públicas falissem, sendo
substituídas pelas empresas do comércio do ensino. Mais do que nunca,
elitizaram-se o ensino e a cultura: os filhos das elites que estudassem nos
ótimos colégios particulares, habilitando-se ao doutoramento das universidades
públicas ou nas universidades norte-americanas.
Há uma reversão de tendência a partir do primeiro governo
Lula, quando o MEC começou a atuar para o fortalecimento da Universidade
Federal, incentivando a pesquisa, remunerando de forma digna os professores,
criando universidades. O ensino obrigatório de Ciências Sociais, Filosofia e
Sociologia volta a ser obrigatório no Ensino Médio. Contemplam-se a Música e as
Artes.
Neonazistas, perfilados na última manifestação convocada pela ultradireita, fazem a saudação que marcou o regime do alemão Adolf Hitler e mostram como reagem os analfabetos disfuncionais, no Brasil
E cometem equívocos e omissões muito sérios. Os chamados
“sistemas de ensino”, produzidos por empresas comerciais que negociam suas
ações em Bolsa de Valores, bestificam jovens brasileiros com material didático
de péssima qualidade e onde o professor fica reduzido à condição humilhante de
“repetidor de aula”. A tentativa política de deputados hoje, na era Eduardo
Cunha, no sentido de esvaziar o conteúdo do ensino nas escolas, já é uma
realidade rotineira. Em meados da década passada, o Sistema de Ensino da Abril
Cultural utilizava a revista Veja para caluniar escolas que se preocupavam em
transmitir a realidade brasileira aos seus alunos, identificando e acusando
professores “comunistas”. A mesma Abril inaugurou o mecanismo de corrupção,
junto a prefeituras e prefeitos, facilitando a venda do seu material para
consumo nas escolas municipais. Corruptores e corrompidos.
Eis aqui um desafio aos que não entenderam ainda a
necessidade de uma Constituição de olhos voltados para o século XXI. O pacto
federativo precisa ser revisto radicalmente!
Sobre Educação, a maioria dos Estados e a quase totalidade
das prefeituras carecem de condições mínimas para cumprimento das atribuições
que lhes são delegadas. A Carta de 1988 adotou uma descentralização irreal e
que vai provocando disfunções seriíssimas. Entre as diretrizes elaboradas pelo
MEC e a ação política de governadores e prefeitos há um abismo intransponível.
Tanto a incompetência interesseira de políticos regionais
como o utilitarismo dos comerciantes do ensino, ambos tornaram absolutamente
impossível a modernização do ensino básico. Como resultado dessa paralisia no
tempo, as paredes das salas de aula formatam hoje um espaço que sufoca os
jovens, expostos às dimensões quase infinitas da Internet que se abrem através
do computador. Os adolescentes, aprisionados na escola convencional, ainda
encontram liberdade nos espaços dos shopping centers. O que está sendo afirmado
aqui fica evidente quando se lembra que as últimas
experiências inovadoras significativas no Brasil foram a Universidade
de Brasília, com Darcy Ribeiro, e os CIEPS, com Brizola e o mesmo Darcy
Ribeiro.
O Direito à Educação é assegurado pela Constituição Federal
como um direito fundamental, tendo sido contemplado pela Constituição no artigo
6 º, localizado no capitulo intitulado “Direitos Sociais”. O Ensino Básico
(Fundamental + Médio) impõe-se como direito assegurado a todo cidadão
brasileiro. Tanto quanto a reforma agrária, ou a limitação do direito de propriedade
pelo interesse social … Letras, letras mortas. É bem verdade que os governos de
Lula e Dilma se fixaram no ideal do “ensino para todos”. A partir disso,
desenvolveu-se e desenvolve-se um esforço orientado por critérios de
quantidade, mas não de qualidade.
No afã de formar gente de nível universitário, os governos
do PT quase que atingiram o exagero de uma antiga piada: “brasileiro, ao
nascer, ganha o título de doutor, aos 18 anos devendo fazer uma opção”. A
universalização universitária não será uma utopia desastrada? De novo a mesma
preocupação: quantidade; e o que fazem com a qualidade: É baixa, pouca e
insuficiente?
Um dos equívocos mais grosseiros foi cometido com a criação
do FIES. O Ministro da Educação acaba de corrigir as distorções gritantes de um
programa demagógico. Até recentemente, alguns vários bilhões de reais foram
destinados ao financiamento de estudantes, em universidades reconhecidas pelo
próprio MEC como sendo de qualidade inferior, concentrados nos Estados mais
ricos, com financiamento concedido a filhos de famílias de classe-média, para
matrícula em cursos de Direito, Administração e similares. O Ministro Renato
Janine Ribeiro limitou o uso do benefício a famílias pobres, nas regiões mais
pobres do país, para cursos de Engenharia, Medicina e similares, ministrados em
escolas que venham merecendo boa conceituação.
Alvíssaras. As coisas vão tomando forma digna,pois tivemos
alguns anos de descalabro descompromissado.
Reconhecidamente, o sistema de ensino brasileiro não é menos
do que péssimo. Em diversos momentos forma bons profissionais. Mas,
praticamente, nunca forma bons cidadãos. Os brasileiros não sabem o que é o
Brasil, não conhecem a sua História, recebem informações rudimentares sobre a
sua geografia e são ignorantes completos quanto à sua economia, problemas
atuais e potencial. Não estão sendo ensinados a pensar, não sabem ler, não
leem, carregam uma lastimável preguiça mental.
A pobreza é tal que, mesmo à esquerda, frequentemente se vê
o dogmatismo tolo, simplificador de tudo: ‘os que não pensam exatamente como eu
penso são fascistas’. Perderam alguns a capacidade de pensar e, de pensar
indagativamente. Não há espírito crítico, o que o ensino puramente técnico e de
má qualidade não contempla.
O que tudo isso tem a ver com o 16 de agosto? Serve para que
se entenda toda aquela gente como o lixo social que as nossas escolas estão
deformando. Para pedir a ditadura militar e a morte de políticos desagradáveis,
as pessoas precisam passar por um apurado processo de animalização, aquele que
o nosso sistema de ensino tem oferecido. O marketing transformando tudo em
produto de consumo não durável, consumidores consumíveis, produz o restolho
obsoleto do que teria sido um ser, e humano; hoje na avenida são zumbis
alucinados.
Enfim, o esforço dos governos Lula e Dilma tem revertido
tendências perversas, mas incorpora equívocos. Quem, não apenas os dois, mas
pensados todos os que habitam hoje o nosso mundo político, possui competência
para distinguir o que é humano daquilo que é simples charlatanismo?
Maria Fernanda Arruda é escritora,
midiativista e colunista do Correio do Brasil, sempre
às sextas-feiras.
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