A hostilidade econômica e as sabotagens armadas não fizeram os cubanos se curvarem, ou repensarem seu vigor latino-americanista.
Darío Pignotti, enviado especial a Havana/Carta Maior
Quando
Francisco, um papa que toma mate e fala sobre o “Che”, visitou Fidel
Castro há duas semanas, e conversou com o único líder que protagonizou
vários dos momentos mais intensos da região durante a segunda metade do
Século XX, a América Latina viveu um desses acontecimentos destinados a
entrar para a História. O encontro de Fidel com o papa Jorge Bergoglio,
no contexto da reaproximação entre Havana e Washington, foi um episódio
comparável com a Cúpula das Américas de 2005, quando Luiz Inácio Lula da
Silva, Hugo Chávez e Néstor Kirchner acabaram com a utopia regressiva
da ALCA, a proposta de George W. Bush e seus capangas, o mexicano
Vicente Fox e o colombiano Álvaro Uribe.
Ambos os
acontecimentos indicam o fracasso das políticas hemisféricas da Casa
Branca e mostram, na prática, o potencial político de uma região com os
anseios se soberania não alcançados. Épica e complexa, a Revolução
Cubana pode ser vista por diferentes ângulos, como o da construção de um
sistema político original, e imperfeito, baseado no poder popular. Ou
desde a perspectiva das mudanças estruturais, como a nacionalização dos
bens de produção ou as políticas que garantiram direitos educativos e
sanitários para toda a população.
Mas o aspecto
mais interessantes para a análise é o de compreender a Revolução a
partir de sua identidade nacional e latino-americana.
América Latina
Desde os Anos
60, a soberania intransigente da ilha foi castigada pelos Estados
Unidos, inclusive antes de o bloqueio ser formalizado, durante o governo
de John Kennedy, em 1962.
Um memorando de 1960, desclassificado nos Anos 90, indica a estratégia de atacar a população para minar a adesão ao governo.
“A maioria
dos cubanos apoia Castro, não existe oposição política efetiva, a única
forma de reunir o apoio necessário é através do desencanto surgido das
dificuldades econômicas da população, para conseguir esse objetivo,
deve-se usar qualquer meio”, recomenda o texto apresentado por Dwigth
Eisenhower.
Desde então, a
estratégia de “contenção do comunismo” e a luta dentro das “fronteiras
ideológicas”, ditada por Washington contra o hemisfério foi justificada
pelo argumento de evitar que surgissem outras Cubas na América Latina.
Esse fantasma foi invocado pelos generais que derrubaram João Goulart no
Brasil em 1964, e Salvador Allende, em 1973, um ano depois que de Fidel
se hospedar no país durante quase um mês.
Cuba,
o modelo de socialismo tipicamente latino-americano, como definiu o
herói Ramón Labañino Salazar em entrevista à Carta Maior, foi um tema
onipresente no debate latino-americano dos Anos 60 e 70.
O pretexto da
Guerra Fria e o combate ideológico caíram junto com o Muro de Berlim,
em 1989. Mas, em vez disso atenuar o bloqueio, o tornou mais feroz,
através das leis Torricelli, de 1992, no governo republicano de George
Bush, e a lei Helms Burton, de 1996, promulgada pelo democrata Bill
Clinton. A hostilidade norte-americana era uma política de Estado,
independente do partido que governava.
Washington e
(principalmente) a ultradireita de Miami estavam eufóricos, imaginando
que o colapso da Revolução era iminente, assim como a restauração de um
regime neocolonial, no mesmo estilo do que imperava durante a ditadura
de Fulgêncio Batista, época em que os mafiosos ítalo-americanos
controlavam hotéis e cabarés na capital cubana.
Posteriormente,
nos Anos 90 os ataques terroristas e a guerra desinformativa,
orquestradas na Flórida com o aparato de propaganda centrado no Miami
Herald, se fizeram mais agressivas.
Um jornalista
desse diário, Andres Hoppenheimer, chegou a publicar, com ar profético,
um livro que se transformou em um grande “faz me rir”, devido ao título
“A última hora de Castro”. Em setembro deste ano, o mesmo colunista do
Herald e da CNN criticou Francisco por ter cumprimentado Fidel.
A hostilidade econômica e as sabotagens armadas não fizeram os cubanos se curvarem, ou repensarem seu vigor latino-americanista.
Em 1990, Fidel e Lula criaram o Foro de São Paulo para rebater os cantos da sereia sobre o fim das ideologias e da esquerda.
Visionário,
Fidel Castro foi pessoalmente até o aeroporto da capital cubana, em
dezembro de 1994, para receber o então ainda coronel Hugo Chávez, recém
saído da prisão após liderar um levante contra o governo neoliberal de
Carlos Andrés Pérez, o presidente venezuelano que protagonizou a
ofensiva privatizadora em seu país, assim como Fernando Henrique Cardoso
no Brasil, Carlos Menem na Argentina e Carlos Salinas no México.
CELAC
Na
primeira década do Século XXI, a diplomacia subserviente acabou, graças
à guinada dada pelo Mercosul reinventado por Lula e Kirchner, e também
pela criação da Unasul. Para os governos progressistas, acabar com o
isolamento cubano e revogar a expulsão do país – medida adotada nos Anos
60 – foi uma das prioridades.
Um passo
decisivo para isso dado por Lula, em 2008, quando organizou um encontro
de presidentes latino-americanos, com a presença de Raúl Castro, numa
cúpula na qual foi criada a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e
do Caribe (CELAC), uma espécie de OEA, mas sem a presença dos Estados
Unidos e do Canadá.
A construção
do Porto de Mariel, com financiamento do BNDES e inaugurado em 2014 pela
presidenta Dilma, foi outro movimento brasileiro contra o isolamento de
Cuba. Certamente, Washington não aprovou a aproximação concreta entre
Brasília e Havana.
Um ano
depois, Dilma e vários colegas latino-americanos anunciaram que não
participariam novamente da Cúpula das Américas se os Estados Unidos
deixassem de fora o líder cubano Raúl Castro – encontro que finalmente
aconteceu na cúpula de abril deste ano, no Panamá.
Batinas e carros cor-de-rosa
Neste
especial da Carta Maior, reunimos artigos sobre Cuba, o acolhimento dado
por esse país ao papa, durante uma turnê de 5 dias, cuja repercussão
derivarão, possivelmente, em mudanças nos rumos do continente.
Essa seleção
de artigos traz crônicas, como a que descreve a luta cotidiana contra o
bloqueio contada pelo taxista David Hernández, dono de um Ford Victoria,
ano 1953, oito cilindros, pintado de um rosa radical, com o qual nos
leva desde o Hotel Nacional até o bairro da Havana Velha.
Também
mostramos a entrevista com o ex-agente Ramón Albañino Salazar enviado à
Flórida para desarticular os grupos terroristas que atacavam Cuba, preso
pelo FBI em 1998, após ser condenado por uma juíza de Miami, ele
permaneceu preso durante 16 anos nas cadeias norte-americanas, até ser
liberado, no dia 17 de dezembro de 2014, quando Raúl e Obama anunciaram o
restabelecimento das relações.
Também publicamos uma análise sobre a terceira viagem de um chefe de Estado do Vaticano em Cuba.
Francisco
celebrou uma missa na Praça da Revolução, conversou reservadamente com
Raúl e foi até a casa do próprio, defender a ideia de uma
“reconciliação” e da “amizade” entre os cubanos.
Bergoglio não
repetiu o comportamento de João Paulo II, em 1998, com suas lições
incendiárias, resultado de um equívoco essencial.
O papa polaco
Karol Wojtyla confundiu Cuba com o leste europeu, e acreditou que a
Revolução Cubana poderia implodir no início dos Anos 90 … como aconteceu
com a União Soviética e seus países satélites no final os Anos 80.
Tradução: Victor Farinelli
Créditos da foto: reprodução
Texto: / Postado em 04/10/2015 ás 21:10 |
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