quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

DOENÇA PÚBLICA, SAÚDE PRIVADA.


Doença pública, saúde privada

Carente de recursos, o sistema público de saúde ainda vê governos repassar a grupos de medicina privada verbas que permitiriam ao SUS cumprir melhor o seu papel: atender bem e de graça qualquer brasileiro

Por: Evelyn Pedrozo

Publicado em 04/12/2009

Doença pública, saúde privada

Há um ano Guilherme espera corrigir uma deformidade torácica (Foto: Augusto Coelho)

O mundo inteiro está de olho na tentativa de Barack Obama de implementar nos Estados Unidos sua mais ambiciosa promessa de campanha: um programa social e global de saúde, cuja falta macula a imagem do país mais poderoso do mundo – onde hoje quem não paga não tem vez. E, se para os americanos a busca de uma solução para o sistema de saúde teve grande peso na eleição, há quem acredite que, no Brasil, o tema pode começar a ganhar maior importância em 2010 justamente por ser um gargalo à procura de respostas.

Movimentos sociais e sindicais se articulam para defender o Sistema Único de Saúde, o SUS, proposta inovadora e socialmente justa que há mais de 20 anos prevê atendimento médico gratuito a todos os brasileiros, sem nenhum tipo de discriminação. em O SUS foi criado em 1998, uma década depois de a Constituição Federal definir que a saúde é direito de todos e dever do Estado. O sistema, com cobertura integral e universal para 190 milhões de habitantes, encontra-se hoje em uma crise de financiamento e de gestão que ameaça seus princípios. O país precisa de recursos: o gasto anual por pessoa é de US$ 600; para que nenhum brasileiro precise pagar o próprio plano de saúde particular para encontrar atendimento, teria de ser mais de US$ 3 mil per capita.

O déficit no sistema público de saúde cresce porque a Previdência Social deixou de financiar a assistência médica. Mas o tiro fatal foi a extinção da CPMF, em 2008. A perda anual no orçamento do Ministério da Saúde chegou a R$ 24 bilhões. Hoje o ministério propõe a criação de uma nova contribuição. Pela proposta, 95% da população isenta, a contribuição só atingiria pessoas com renda superior a R$ 3.200 e proporcionaria um caixa estimado em R$ 13 bilhões.

Para agravar esse cenário de restrição orçamentária, um componente tem motivado a mobilização da sociedade em defesa do SUS: a terceirização do atendimento por meio de contratos de gestão firmados com Organizações Sociais (OS). O tema pulsa entre representantes do setor. De acordo com o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Francisco Batista Júnior, o modelo das OS, proposto em 1998 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, avançou fortemente no final da década de 1990 nos estados da Bahia, Tocantins, Pará e Maranhão e recuou entre 2002 e 2007. Em seguida, se fortaleceu nos estados de São Paulo, Bahia, na cidade do Rio de Janeiro e no Distrito Federal, além de Pernambuco, onde há uma disputa judicial por sua implantação.

Para o CNS, essa terceirização afronta a Constituição Federal e a Lei nº 8.080, de criação do SUS. “O SUS deve ser prioritariamente público e estatal. O Estado só pode privatizar o que não é sua responsabilidade fazer”, afirma. “No entanto, hoje 60% dos recursos do SUS são direcionados para a iniciativa privada. Somos o país mais privatizado do mundo.”

Batista Júnior afirma que as OS só atendem de acordo com a capacidade instalada porque são gerenciadas como um negócio, e a função do hospital público, muito diferente disso, é atender a todos. Segundo o dirigente, também os valores gastos pelos governos com as OS são maiores do que se o atendimento fosse direto ao público. O CNS defende uma nova CPMF.

Jovita José Rosa, diretora da União Nacional dos Auditores do SUS (Unasus), igualmente critica os governantes que entregam os aparelhos públicos para a iniciativa privada. “Essas OS trabalham na medicina curativa, não na prevenção, porque querem receber por tratamentos mais caros. Até podem pagar melhores salários, mas precarizam a relação de trabalho, e o funcionário fica refém da empresa”, afirma.

Princípios do SUS

O SUS é uma proposta socialista baseada nos princípios da universalidade, integralidade e equidade. De acordo com o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Públicos da Saúde no Estado de São Paulo (Sindsaúde-SP), Benedito Augusto de Oliveira, o Benão, as OS põem em risco esses princípios ao não garantir atendimento a todos os cidadãos e não admitir que todos são iguais perante o sistema. “Além disso, excluem os conselhos de saúde – que são uma ferramenta legal com a qual a sociedade pode fiscalizar e ajudar a melhorar o sistema. Tanto os conselhos como as conferências de saúde apontam para o caminho do serviço público, e não para as OS. Queremos saber por que se insiste nesse modelo, que o governador José Serra (SP) não admite chamar de terceirização ou privatização, mas de parceirização.”

Em setembro passado, o governador paulista conseguiu aprovar a Lei Complementar nº 1.095, que permite a adoção do contrato de gestão por OS em hospitais já existentes e estende o modelo para as áreas de cultura e esporte.

Contratos de gestão firmados entre governos e OS dispensam licitação. As organizações recebem 10% do total do orçamento enviado à unidade hospitalar como pagamento pelo gerenciamento, além de todo o valor referente ao custo de manutenção, incluindo funcionários e a estrutura física do local. “Com as OS, São Paulo acaba com a ferramenta de controle social dos conselhos e manuseia a verba da saúde sem participação da sociedade civil”, explica Benão.

Segundo o deputado estadual Adriano Diogo (PT-SP), nessa lei complementar a Assembleia Legislativa conseguiu pelo menos barrar a proposta governamental de direcionar 25% dos leitos nas OS para planos de saúde. Diogo afirma que, na capital paulista, as unidades de saúde já estão praticamente todas nas mãos das OS. “Nos hospitais municipal e estadual do Servidor Público, assim como no Cruz Azul, há um desmonte total das carreiras. A terceirização atinge vários setores”, critica.

O parlamentar aposta que a saúde será o grande tema nos debates das eleições de 2010. “O Brasil vai passar quatro ou cinco anos de enorme dureza na saúde e na Previdência se os governos forem mais liberais. A maior aspiração dos cidadãos hoje é ter um plano de saúde, o que permite que as empresas avancem cada vez mais para assumir os aparelhos do Estado”, conclui.

Apesar das agruras financeiras, o SUS carrega algumas bandeiras para o Brasil, como o fato de possuir o melhor programa de combate à Aids do mundo, cobertura da totalidade da população em vacinações, de 97% das hemodiálises realizadas no país, de 90% dos procedimentos de alto custo em cardiologia, neurologia, neurocirurgia, entre outras especialidades, abrangência do Samu (192) a 130 milhões de brasileiros. Por ano, são feitas 12 milhões de internações e o programa público de transplante realiza cerca de 15 mil cirurgias, segundo dados destacados pelo diretor do Conselho de Secretários Municipais de Saúde (Cosems) e secretário de Saúde de São Bernardo do Campo, Arthur Chioro. Para ele, também tem evidência internacional o programa brasileiro de medicamentos genéricos.

O braço da lei

A promotora de Justiça Anna Trotta Yaryd, do Ministério Público de São Paulo, ressalta que existe questionamento da constitucionalidade das OS, ainda pendente de decisão no Supremo Tribunal Federal. “Fato é que a lei diz que a participação do privado no SUS deve ser complementar, e em São Paulo há casos de desestruturação do serviço existente, como o laboratório do Hospital Emílio Ribas”, afirma.

Na cidade de São Paulo, segundo a promotora, houve contratação de forma acelerada e nenhuma estruturação para isso. No caso das unidades de Assistência Médica Ambulatorial (AMA), criadas em São Paulo, o que existe é apenas uma divisão do atendimento da UBS (posto de saúde). E a AMA não encaminha para o sistema. As OS estão assumindo o Programa de Saúde da Família (PSF), as AMA, os serviços do Capes (de atenção psicossocial) e as UBS. “Justificam o modelo e a regionalização em razão da necessidade de melhoria do funcionamento do sistema”, comenta.

O Ministério da Saúde, por meio de sua assessoria, defende a criação de uma nova figura jurídica: a fundação estatal de direito privado. “É 100% pública, faz parte da estrutura do Estado, e atenderá somente ao SUS, com porta de entrada única.”

Complexidade

Uma das duras críticas feitas às OS é o não atendimento de casos mais graves. O presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo, Cid Carvalhaes, observa que os governos estadual e municipal alegam que o custo de internação nos hospitais administrados pelas OS é baixo. “Mas o problema é que nesses locais não são atendidos pacientes com doenças de alta complexidade. Não há unidades de hemodiálise para tratamento de doentes renais crônicos, por exemplo. Quem precisa de internações prolongadas encontra as portas fechadas”, diz. “Os atendimentos e internações são seletivos. Além disso, os hospitais não fazem transplante de órgãos nem oferecem medicação de alto custo. Os pacientes com problemas complexos são enviados para outros hospitais ou prontos-socorros da rede pública sem a certeza de agilidade no atendimento”, denuncia.

O sindicalista observa ainda que em São Paulo o assunto não chegou sequer a ser discutido no Conselho Municipal de Saúde. “O Ministério Público já denunciou que é uma maneira de burlar, de uma só vez, o controle público, a lei de licitações, os limites para gastos com pessoal e a responsabilidade fiscal, ultrajando o SUS.”

As OS põem em risco os princípios do SUS ao não garantir atendimento a todos os cidadãos e não admitir que todos são iguais perante o sistema

O Sindsaúde-SP reforça a acusação de que as OS funcionam atualmente como hospitais referenciados, conhecidos como hospitais de portas fechadas, pois atendem somente pacientes encaminhados por outros serviços, enquanto os próprios hospitais do estado atendem a todos os usuários, indiscriminadamente.

Estudo do Dieese mostra que o orçamento da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo passou de R$ 5,66 bilhões em 2004 para R$ 10,94 bilhões em 2009, variação de 93,25%. No mesmo período, os repasses da secretaria para as OS subiram de R$ 626,23 milhões para R$ 1,89 bilhão, crescimento de 201,97%.

No entanto, o Diário Oficial do Estado de São Paulo do dia 27 de março de 2009 publicou o balanço patrimonial da Associação Congregação de Santa Catarina (Hospital Geral de Pedreira) no exercício de 2008. O déficit do exercício era de R$ 9,1 milhões, valor quase idêntico ao montante contraído em empréstimos bancários.

“Nesse hospital ocorreu uma diminuição nos atendimentos de primeira consulta, consulta subsequente, obstétrica e pediatria e um aumento em cirurgia, mostrando priorização em atendimentos mais custosos”, alfineta o diretor do Sindsaúde-SP Ângelo D’Agostini. Para ele, o grosso dos gastos das OS se dá com altos salários para cargos de confiança. O mesmo Diário aponta déficit em 11 hospitais em 2008 e 10 em 2007, no estado. “O grande argumento das OS é que elas podem ter déficit e o estado não pode.”

Um estudo dos relatórios dos contratos de gestão dos hospitais estaduais que já estão sob administração das OS revela que a terceirização dos serviços já avança para a quarteirização. Em 2008 quatro deles gastaram mais com serviços de terceiros do que com pessoal próprio: Hospital de Francisco Morato (Santa Casa de SP), de Pedreira (Associação Santa Catarina), da Vila Alpina (Seconci) e Itapecerica da Serra (Seconci).

Fonte: Rêde Brasil

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