Mais de 300 mil pessoas foram às ruas da capital britânica neste sábado para se opor aos planos do governo de cortes de gastos públicos, na maior manifestação popular do gênero em décadas. “Eu nasci em 1945, no final da guerra, então eu cresci com educação pública e gratuita, eu fui para a universidade, eu tive acesso à saúde pública por toda minha vida e tudo isso agora está indo com os planos do governo, que são um assalto ideológico à esfera pública”, disse à Carta Maior a professora Harriet Bradley, da Universidade de Bristol.
Na maior manifestação popular vivida na capital britânica em uma geração, uma multidão estimada em mais de 300 mil pessoas superlotou as ruas dos quarteirões políticos mais importantes de Londres neste sábado, três dias depois de o governo anunciar o orçamento para o próximo ano fiscal, com mais de 30 bilhões de libras em cortes nos gastos públicos. A caminhada – que durou mais de cinco horas e superou de longe a expectativa inicial dos organizadores – teve como objetivo demonstrar oposição às medidas de austeridade defendidas pela coalizão governista.
A maior manifestação coordenada por um sindicato em duas décadas no país trouxe pessoas de todas as partes, em mais de 600 ônibus fretados e até mesmo trens. Estima-se que a demanda por transporte para Londres tenha superado a oferta, limitando o comparecimento dos ativistas.
“Foi fantástico”, disse Paul Nowak à reportagem de Carta Maior, sentado ao lado do palco montado no Hyde Park para abrigar o ápice do evento e o fim da marcha. O dirigente da Trades Union Congress (TUC), central sindical que organizou a manifestação, comemorava a presença de “pessoas que nunca estiveram antes em uma manifestação política em suas vidas, dizendo em uma só voz que os cortes não são a cura”.
Quem percorresse o percurso da manifestação poderia testemunhar os motivos da alegria de Nowak. Assombrosa em diversidade, a Marcha para a Alternativa era composta de aposentados a estudantes, passando por famílias empurrando carrinhos de bebê. Muitos deles tendo viajado horas para estar lá. Eram 4,5 mil policiais e seguranças contratados pela TUC, trabalhando mais para orientar o público do que para manter a ordem. “Tivemos um quarto de milhão de pessoas e quase nenhum problema”, afirmava uma postagem em uma página especial montada na internet pela polícia para se comunicar com os manifestantes.
Às 11h da manhã, uma hora antes do combinado para o início da manifestação, os organizadores enviavam mensagens pela internet pedindo que as pessoas que ainda não tinham chegado procurassem desembarcar em estações de metrô diferentes a fim de evitar aglomeração. Eram 15h30 quando os organizadores anunciaram que as últimas pessoas estavam finalmente passando pelo ponto de partida.
O peculiar senso de humor britânico permeou toda a marcha. Dois ativistas construíram uma réplica de um tanque de guerra de cerca de dois metros e meio por três. Pintaram o símbolo da paz nas laterais do carro e desfilavam, empurrando o veículo da “guerra contra os cortes” tal como Fred Flintstone e Barney Rubble, do desenho animado da Hanna-Barbera. Até música tinha a invenção, e a trilha sonora variava de temas de filmes de guerra antigos a uma sugestiva Let's Lynch The Landlord, da clássica banda punk californiana Dead Kennedys.
“Estou marchando pois acredito que esses cortes vão destruir tudo de bom que existe em nossa sociedade”, disse Harriet Bradley, professora na Universidade de Bristol, a 170 quilômetros a oeste de Londres. Sentada ao pé de um monumento para recuperar o folêgo quando a manifestação já andava a mais da metade de seu percurso, ela se mostrou feliz com o a quantia de pessoas na marcha, porém temerosa com o futuro do “estado de bem estar social que foi construído depois da guerra e que é o nosso orgulho e alegria”.
“Eu nasci em 1945, no final da guerra, então eu cresci com educação pública e gratuita, eu fui para a universidade, eu tive acesso à saúde pública por toda minha vida e tudo isso agora está indo com os planos do governo, que são um assalto ideológico à esfera pública”, afirmou Bradley. Assim como uma boa parte do público, que carregava cartazes propondo uma greve geral, Bradley acredita que é preciso fazer mais que isso para impedir o avanço das reformas conservadoras.
Sam (que não forneceu o sobrenome), um norte-americano aposentado que mora em Liverpool e milita no Keep Our NHS Public (Mantenha o nosso Sistema Nacional de Saúde Público), segurava uma faixa em defesa do sistema de saúde britânico. “Eu sei como é quando o sistema público de saúde é destruido”, disse. “O NHS foi uma das grandes conquistas do últimos 100 anos e a idéia de os serviços de saúde serem providenciados através do mercado é uma besteira completa – eu desafio qualquer um a mostrar evidências de que o mercado pode fornecer um serviço melhor do que o setor público”, diz referindo-se ao sistema no seu país natal.
Sam acredita que os movimentos populares estão começando a se organizar e essa é a única solução possível para pressionar o governo a mudar os planos de privatização do sistema de saúde.
Ele vê uma relação entre os movimentos populares que começam a se manifestar nos EUA e na Inglaterra, muito em função do que ele considera uma postura do Partido Trabalhista (Grã-Bretanha) e do Partido Democrata (EUA) de virar as costas para o povo.
Certamente uma opinião não compartilhada pelo líder dos trabalhistas, o oposicionista Ed Miliband, Ele subiu ao palco no Hyde Park para um discurso e atacou o governo. “Sabemos o que o governo vai dizer: que essa é a marcha da minoria. Eles estão errados”. Miliband, assim como boa parte da manifestação, usou de uma expressão cunhada pelo primeiro ministro para descrever o que irá substituir os serviços públicos quando eles se forem – A Grande Sociedade, composta por pessoas das comunidades em trabalhos voluntários.
“Vocês queriam criar a “grande sociedade” - essa é a grande sociedade. A grande sociedade unida contra o que esse governo está fazendo nesse país”.
A manifestação, pacífica em sua grande maioria, parecia estar pronta para um desfecho perfeito por volta do final da tarde. Manchetes de jornais estariam todas disponíveis para o dia em que a política voltou às ruas de Londres. Os problemas porém vieram. E embora não tenham relação com a marcha da TUC, certamente roubaram as grandes manchetes que os ativistas já podiam antever quando o mar de descontentamento pacífico inundou as ruas do West End de Londres a partir de Embankment.
Ativistas que organizaram manifestações paralelas se reuniram no centro comercial londrino, a rua Oxford. Por volta das 15h, a concentração era tamanha que algumas das lojas que foram alvos de ativistas no passado resolveram fechar as portas temporariamente. Pouco mais de uma hora depois, funcionários seriam liberados de lojas como Top Shop, que haviam dado o dia como encerrado, diante de milhares de anarquistas e estudantes concentrados na região.
Algumas lojas tiveram vidros quebrados e foram atacadas com tinta. Manifestantes da UK Unkut invadiram a Fortnum and Mason, uma luxuosa loja de departamentos próximo a Picadilly. Cantando palavras de ordem e exigindo que a empresa contribuisse com mais impostos para a sociedade inglesa, a UK Uncut obrigou a loja a fechar as portas. Embora aleguem não ter destruido nada, alguns manifestantes foram presos pelo batalhão de choque que os esperava na porta.
“Isso não tem nada a ver com a marcha”, disse Nowak, defendendo a manifestação pacifica. “Esse foi um evento onde as pessoas trouxeram as suas famílias”.
Perto da meia noite, a BBC ainda transmitia ao vivo da praça Trafalgar, onde uma centena de manifestantes ainda estava reunida e policiais agiam para retirá-los do local. Ao todo, ao longo do dia, mais de 200 manifestantes foram presos.
By: Wilson Sobrinho, correspondente da Carta Maior em Londres
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