Desembargadora Kenarik Boujikian: “Ninguém, muito menos a polícia
e as demais instituições estatais podem expor uma pessoa de forma
humilhante, seja ela quem for, seja ela suspeita ou autora de crime”
Em 10 de maio, o programa Brasil Urgente Bahia exibiu, e a Band reprisou nacionalmente, a matéria Chororô na delegacia: acusado de estupro alega inocência, da repórter Mirella Cunha.
Repugnante. Ultrajante. Degradante.
Porém, só a partir de 21 de maio, quando o vídeo caiu nas redes sociais, o episódio ganhou repercussão nacional.
O jornalista e blogueiro Renato Rovai foi o primeiro a denunciar a barbaridade: A repórter loira, o suposto negro estuprador e uma sequência nojenta.
Um grupo de jornalistas enviou carta aberta ao governador, ao
Ministério Público e à Defensoria Pública do Estado condenando os abusos
de programas policialescos na Bahia. O Ministério Público Federal
decidiu investigar o caso.
Indignado, o baiano Gerson Carneiro, leitor do Viomundo e defensor de causas lúcidas e injustiçadas, nos mandou o link do vídeo, com esta mensagem:
“Poxa, independentemente de qualquer culpa do rapaz, isso não se faz.
Todos os preconceitos estão aí. Um negro, pobre, acusado de estupro,
sem advogado, algemado, acuado por uma loira detentora da situação
naquele momento. O rapaz indefeso responde ingenuamente aos deboches da
moça. Jornalismo tinha que ter um órgão regulador como tem Direito,
Medicina, Engenharia, Arquitetura…”
Dias depois, Rovai fez outra denúncia: novo vídeo do caso Mirella-Band compromete apresentador Uziel Bueno, famoso na Bahia pela sua agressividade.
O vídeo tem montagens típicas de internet, como repetições das falas e
legendas, mas deixa evidente e claro que Uziel Bueno é tão responsável
quanto Mirella Cunha neste caso.
Num primeiro momento, Uziel insinua com dois dedos que vai fazer o
exame de próstata em Paulo Sérgio. Depois, com uma folha de sulfite
enrolada simulando um pênis, repete as provocações.
Mandamos os dois links à doutora Kenarik Boujikian Felippe, que é
co-fundadora e ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia
(AJD), desembargadora no Tribunal de Justiça de São Paulo e ex-membro do
Conselho de Ética do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado
de São Paulo.
“É pior do que havia lido”, reagiu, no ato. Daí nasceu a nossa entrevista.
Se tivesse de dar uma nota para a entrevista feita pela repórter
da Band e os comentários do apresentador do programa, que também é
jornalista, qual seria?
Kenarik Boujikian — Zero para o Jornalismo, zero para o Estado.
Por quê?
– O Jornalismo e o Estado não cumpriram a regra essencial da
Constituição Federal: a dignidade humana é fundamento da República, que
se constitui em um Estado Democrático de Direito.
É inaceitável, em pleno século XXI, um jornalista tratar um ser humano
sem o menor respeito, como se estivéssemos na Inquisição. Se
jornalistas, com a co-responsabilidade das empresas para qual
trabalham, atuam com este proceder, só o fazem porque existe a
conivência dos órgãos de Estado.
Legalmente, a polícia pode expor um preso assim?
— Ninguém, muito menos a polícia e as demais instituições estatais
podem expor uma pessoa de forma humilhante, seja ela quem for, seja
ela suspeita ou autora de crime. A nossa Constituição Federal, no
artigo 5º, assegura aos presos o respeito à integridade física e moral
e o direito de personalidade.
No tocante ao Jornalismo, este repulsivo episódio, me faz lembrar as palavras de Francisco José Karam (Jornalismo, Ética e Liberdade):
É necessária a defesa da “vinculação da realização ética da
profissão com medidas efetivas para a democracia informativa nos meios
de comunicação, incluindo políticas que favoreçam a segmentação do
mercado, a diversificação da propriedade, o controle social sobre a
mídia existente hoje e o acesso plural aos meios”.
Sem essas medidas, dificilmente os graves problemas pelos quais passam o Jornalismo brasileiro serão superados.
No Brasil, nós temos o Código de Ética, que lista uma série de deveres para os jornalistas.
– O que torna mais grave esse episódio. De acordo com artigo 6º do Código de Ética, é dever do jornalista, entre outros:
I – opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como
defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos;
V – valorizar, honrar e dignificar a profissão;
VIII – respeitar o direito à intimidade, à privacidade, à honra e à imagem do cidadão;
X – defender os princípios constitucionais e legais, base do estado democrático de direito;
XI – defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das
garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos
adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias;
Como não bastasse isso, dita o artigo 9º do mesmo Código de Ética,
que a presunção de inocência é um dos fundamentos da atividade
jornalística.
As imagens e o conteúdo da entrevista demonstram cabalmente que foi
feita tábua rasa desses princípios, pois o que todos viram foi barbárie.
Por que a Justiça faz vista grossa a esses abusos?
– Não se pode generalizar, mas, infelizmente, frequentemente, os
delegados abrem as portas das delegacias e permitem que os jornalistas
tenham contato direto com as pessoas detidas. Escancaram a entrada dos
distritos policiais para que jornalistas violem direitos primários,
sem qualquer cerimônia, com plena aquiescência.
Os promotores de Justiça e os defensores públicos não atuam em defesa
do Estado e Direito, exigindo medidas do Judiciário para que esta
conduta cesse ou não fique impune. Assim, o Judiciário permanece inerte
e com tal omissão atesta a validade dessas condutas.
Interessante que, na mesma semana em que as redes sociais mostraram a
sua indignação com esta entrevista humilhante, vimos, na chamada CPI do
Cachoeira, outra pessoa ser inquirida e fazer uso do seu direito
constitucional de permanecer em silêncio. Esse é direito sagrado,
fundamental. O que se espera de um jornalista é que, no mínimo, atente a
isso.
Qual a diferença entre esses dois casos? O jovem que foi exibido e
humilhado para todos verem, inclusive seus familiares, era negro, de
baixa escolaridade e certamente não tinha condições de contratar
advogado nem lhe foi disponibilizado um defensor público. Na Bahia, como
em outras unidades da federação, o número de defensores públicos é
irrisório perto da demanda.
O outro tinha advogado constituído, estava em outra esfera
econômica/social/política. Só que todos os cidadãos, sem exceção, têm
direito à orientação por advogados ou defensores públicos para só depois
se manifestarem. E isso – atenção! — em qualquer espaço.
Ou seja, há uma conivência do Estado. Por quê?
– Em certa medida, esta conivência estatal é reflexo da ditadura
civil-militar que o Brasil viveu. Naquele período, o Estado elegeu
como seus inimigos aqueles que queriam outro país. Contra eles, tudo
era possível, pois inimigos não são considerados pessoas,
apenas inimigos e como tais não possuem o atributo da dignidade,
assim foram torturados, desrespeitados, desaparecidos e assassinados.
No dias de hoje, como legado daquela cultura, os inimigos eleitos pelo
Estado e também pela mídia são os pobres e marginalizados, tratados
como se coisas fossem.
Também repercute, em caráter individual, o desenvolvimento moral das
pessoas que exercem poderes de Estado, que não conseguem se colocar na
posição do outro. Não conseguem usar o “véu da ignorância” e se colocar
na posição das outras pessoas. Não conseguem ver os que são diferentes
de si por certas circunstâncias, como pobreza, pouca instrução, negros,
como seus iguais, possuidores dos mesmos atributos. Se conseguissem
fazer este exercício, não atuariam de modo perverso.
Existe alguma legislação em relação à exposição de pessoa presa?
– Na Justiça paulista, há cerca de três décadas, o magistrado
José Gaspar Gonzaga Franceschini, na ocasião Corregedor da Polícia e
dos Presídios, por meio de portaria, inaugurou a proibição para
impedir que fosse feita exposição dos presos. Depois, o corregedor
Geraldo Pinheiro Franco e outros juízes da capital seguiram esses
nortes.
Foram medidas administrativas e não jurisdicionais, que bem poderiam
servir de inspiração para as Corregedorias Gerais de todo o Brasil ou
mesmo para o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), de modo que todas as
situações prisionais fossem alcançadas. É para que pessoas sujeitas ao
poder estatal — sob custódia do Executivo e Judiciário – não sejam
expostas, observando que, por vezes, só exposição delas já caracteriza a
execração.
Agora, não expor o preso não significa que ele não possa dar
entrevista. Com certeza, ele pode ter interesse em fazê-lo. Mas deve
ser de forma verdadeiramente consentida e somente depois de conversar
com seu advogado/defensor, que poderá dizer quais os direitos que lhe
estão assegurados.
Nessa altura, alguns vão questionar: isso não cercearia a liberdade de imprensa?
— Os direitos de expressão, informação e imprensa são direitos
interligados. Em 1776, portanto há 236 anos, a Declaração de Direitos
do Estado de Virgínia, nos EUA, reconheceu explicitamente a liberdade
de expressão através da imprensa.
Em 1791, a Emenda número 1 da Constituição dos Estados Unidos da
América garantiu este direito. E em 1789 a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão contemplou esses direitos estabelecendo:
“A livre comunicação das idéias e das opiniões é um dos mais
preciosos direitos do homem; todo o cidadão pode, portanto, falar,
escrever, imprimir livremente, respondendo todavia pelos abusos desta
liberdade nos termos previstos em lei”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, em seu artigo 19,
acolheu tais direitos e também expressamente o direito de informação.
Destaco ainda: o artigo 19 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e
Políticos, de 1966; o Convênio Europeu para a Proteção dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais; e o artigo 13 do Pacto de San
José da Costa Rica.
Todo o conteúdo de normas internacionais, acrescido dos princípios
constitucionais, exige a conduta ética do jornalista. Isso implica
reconhecer que a dignidade que cada ser humano carrega é o limitador da
sua atividade.
Logo, são inadmissíveis ironias, chacotas, humilhações, preconceitos,
desrespeitos, gritos, ironias, gozações. Só pode entrevistar a pessoa
sob custódia dentro desses padrões. Do contrário, o jornalista estará
violando o direito do indivíduo entrevistado e de todos nós.
O que fazer?
— É preciso encontrar soluções fora do Sistema de Justiça, que
deve ser o último patamar a ser perseguido para a concretização dos
direitos.
Outras esferas, mais efetivas e gerais, devem atuar para que o sistema
de liberdade de expressão, pensamento e imprensa funcionem para o
aprimoramento da democracia e do ser humano.
O Ministério das Comunicações, por exemplo, possui prerrogativas no
sistema de concessão de TVs, mas é absolutamente omisso na tarefa de
resguardar os direitos de cidadania.
Também é necessário pensar na criação de mecanismos de controle
social contra práticas discriminatórias e violadoras dos direitos
humanos praticadas pela mídia. Isso já existe em outros países, como a
França, e não é absolutamente sinônimo de censura.
Espero que esse episódio da Bahia seja o estopim para uma maior
reflexão sobre a necessidade de caminhos regulatórios da mídia que
garantam a liberdade de imprensa no mesmo patamar da defesa dos direitos
dos cidadãos, que não podem ser aviltados, quando lhe tocam o espaço
da dignidade.
Conceição LemesNo Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário