sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

João Paulo I: A última noite do papa sorriso e outras mortes no Vaticano

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Quantos papas, no curso da história, terão morrido envenenados? A pergunta é formulada por John Cornwell, em seu livro Um ladrão na noite, que a Editora Viking lançou recentemente, na Inglaterra [1989], e cujo tema é a morte, até hoje não convenientemente esclarecida, do papa João Paulo I. O autor cita um número muito maior de pontífices assassinados do que se poderia esperar.
João 8º, o primeiro papa a ser morto, foi envenenado em 882 por membros de sua própria corte. A poção demorou tanto a agir, que ele foi eliminado a pancada. Aproximadamente dez anos mais tarde, o corpo do papa Formoso, envenenado por uma facção dissidente de seu séquito, foi exumado pelo seu sucessor, Estevão VII, solenemente excomungado, mutilado, arrastado pelas ruas de Roma e lançado nas águas do Tibre.
No século 10, João X foi envenenado no cárcere por Marozia, filha de sua amante e mãe de João XI. Ainda no mesmo século, foram envenenados Benedito VI e João XIV.
O novo milênio não se mostrou mais benévolo para os santos padres: o primeiro a ser envenenado foi Silvestre II, conhecido como O Mago, por suas alegadas transações com o diabo, e, poucas décadas depois, Clemente II e seu sucessor Dâmaso II – embora não se exclua a hipótese de este último ter sucumbido à malária. No apagar das luzes do século 13, Celestino V foi envenenado por seu sucessor, Bonifácio VIII. Nos primeiros anos do século 14, Benedito XI teria morrido por ter ingerido vidro moído misturado com figos. Cerca de 150 anos se passaram, até a morte de Paulo II, depois de comer “dois grandes melões”. Embora a causa da morte possa ter sido o pecado mortal da gula, suspeitou-se de veneno. E, em 1503, Alexandre VI, o famigerado papa da família Borgia, morreu provavelmente envenenado de uma poção destinada à outra pessoa. A maneira de sua morte sugere arsênico: sua carne enegreceu, em torno de sua língua, monstruosamente aumentada, formou-se espuma, e seu corpo ficou inchado de gases, tão intumescido que os encarregados de seu sepultamento foram obrigados a pular em cima de seu estômago para que a tampa do caixão pudesse ser fechada.
Nem todas as tramas tiveram êxito. Cerca de dez anos após a morte de Alexandre VI, o colégio elegeu Leão X, que o autor descreve como “um homem tão ávido por dinheiro, que leiloava chapéus cardinalícios”. Cinco cardeais contrataram um cirurgião florentino para assassiná-lo pela introdução de veneno no ânus, ostensivamente para tratar das hemorróidas papais, mas a conspiração foi descoberta.
Teriam cessado os assassinatos pontifícios com o advento dos tempos modernos? Cornwell não responde à pergunta, mas, segundo o que ele descreve como um livrinho infame intitulado Os documentos do Vaticano, de um certo Nino Lo Bello, um assassinato dessa natureza havia ocorrido em 1939. No princípio de fevereiro daquele ano, Pio XI, de 82 anos, planejava um discurso especial contra o fascismo e o antissemitismo e denunciaria a concordata firmada com Mussolini. Il Duce tinha, pois, motivo forte para dar cabo do idoso papa. Conta-se que, 24 horas antes de Pio ler seu discurso em uma reunião especial de bispos, recebeu uma injeção do doutor Francesco Petacci. Além de suas funções médicas dentro do Vaticano, Petacci era o pai de Clara Petacci, amante de Mussolini. Os defensores da teoria da conspiração acreditam que Petacci tenha injetado veneno no papa, pois ele morreu na manhã seguinte, antes de poder ler seu discurso, cujo texto nunca foi encontrado.
E agora surge o caso de Albino Luciani, eleito no dia 26 de agosto de 1978, no quarto escrutínio, numa das eleições mais rápidas da história do Vaticano, e morto no dia 28 de setembro do mesmo ano, um dos reinados mais curtos da história do papado. Mas não o mais curto de todos. Este triste privilégio coube a Urbano VII, que, em 1590, ocupou o trono de São Pedro durante 13 dias, morrendo de morte natural, assim como Celestino III, que, em 1045, foi papa por 22 dias e Marcelo II, que reinou 23 dias, em 1555. O único que teve morte violenta foi o já citado Dâmaso II, cujo papado, em 1048, durou 24 dias.
No prefácio de Um ladrão na noite, John Cornwell escreve: “Esta é a história de uma investigação das circunstâncias da morte súbita do papa João Paulo I [...] e as alegações de que teria sido assassinado por altos prelados da Igreja Católica Romana.” O Vaticano esperava que o autor obtivesse provas conclusivas da falsidade dessas teorias. Cornwell se confessa um católico relapso. Passou sete anos estudando em seminários ingleses, mas deixou a Igreja em consequência de uma decisão consciente de rejeitar tanto a vocação como a fé em Deus. Não obstante, dedicou-se a um projeto de investigação de fenômenos “sobrenaturais”, como a história de padre Pio, o Estigmático, as mais recentes provas a respeito do Santo Sudário de Turim e as aparições de Maria às crianças de Medjugorje, na Iugoslávia. Foram essas últimas que levaram o escritor a Roma, em outubro de 1987, e ali foi súbita e surpreendentemente estimulado pelo Vaticano a considerar um projeto inteiramente diferente: a verdadeira história da morte de João Paulo I.
O primeiro encontro de Cornwell foi com o arcebispo John Foley, presidente da Comissão de Comunicação Social, “um homem grande e calvo [...] o rosto inocente e redondo como uma bolacha”. Depois de uma troca de amenidades, Foley surpreendeu o autor, dizendo: “Há quem diga que o papa João Paulo I foi envenenado por um de nós, aqui, no Vaticano. Um de nós está sendo apontado como suspeito principal. E pena que alguém como você não escreve a verdade sobre o que realmente aconteceu [...]. Estou certo de que seria mais interessante do que toda essa ficção sensacionalista.”
Desnecessário dizer que John Cornwell aceitou a missão e acabou produzindo Um ladrão na noite, um trabalho minucioso e, supõe-se, fiel a verdade, o que lhe falta em emoção e drama sobra em precisão e inteireza. É, na verdade, mais um relatório do que uma obra de leitura e como relatório deve ser lido.
Cabe, aqui, uma biografia de Albino Luciani. Nasceu em 17 de outubro de 1912. Filho de um operário francamente socialista. Frequentou o seminário locais e foi ordenado em 1935, sendo nomeado vigário-geral de Belluno, sua terra natal, em 1948.
Em 1958 foi designado bispo de Vittoria Veneto. A partir de 1969, quando já era Patriarca de Roma, passou a adotar um ponto vista mais de direita. Sua eleição como papa causou quase tanta estupefação como sua morte 33 dias depois. Como podia o “candidato de Deus” escolhido com tal entusiasmo por cardeais orientados pelo “Espírito Santo” já estar morto?
Como causa mortis, infarto do miocárdio, o papa tinha 66 anos incompletos e gozava de boa saúde. Não morrera dormindo, dizia o comunicado, mas sentado na cama lendo, com os óculos sobre o nariz.
Na quinzena que se seguiu a morte do papa choveram declarações porta-vozes do Vaticano, de membros da papal e de importantes testemunhas, oficiais ou não. Nessas declarações, Cornwell detectou dez contradições que persistem até hoje e que envolvem um grave desacordo a respeito dos seguintes pontos:
1º Quem encontrou o corpo?
2º Onde o corpo foi encontrado?
3º A causa oficial da morte.
4º A estimativa da hora da morte.
5º A hora e a legalidade do embalsamamento.
6º O que o papa tinha nas mãos no momento da morte.
7º O verdadeiro estado de sua saúde nos meses anteriores a sua morte.
8º O paradeiro dos objetos pessoais do papa que estavam na alcova papal.
9º Se a Cúria havia ou não ordenado e realizado uma autópsia secreta.
10º Se os embalsamadores haviam ou não sido chamados antes de o corpo ser oficialmente encontrado.
Os boatos de que João Paulo I teria sido assassinado começaram a circular no mesmo dia de sua morte. Uma das primeiras suspeitas foi levantada por uma organização ligada ao ultra-tradicionalista arcebispo Lefebvre: o papa fora assassinado por “liberais” da Igreja Católica, porque planejava abolir as modificações introduzidas pelo Concílio do Vaticano. Algumas das discrepâncias acima citadas não haviam escapado à atenção do grupo.
A Rádio Vaticano anunciou em 29 de setembro que, ao morrer, o papa lia A imitação de Cristo, popular obra de devoção dos católicos. Outras fontes disseram que se tratava de sermões e discursos ou, alternativamente, de um discurso que iria proferir ante uma assembleia de jesuítas.
A agência noticiosa italiana Ansa, por sua vez, afirmou que o corpo não fora encontrado pelo secretário papal, padre John Magee, mas por uma irmã, Vincenza, que trazia o desjejum do pontífice, e que seus restos mortais foram descobertos não às 5h30, mas às 4h30. Que teria acontecido nessa hora crucial?
Mas o despacho mais estranho, também divulgado pela Ansa, dizia que os embalsamadores, os irmãos Ernesto e Renato Signoracci, foram apanhados em suas casas por um carro do Vaticano às 5 horas da manhã e levados diretamente à morgue da pequena cidade-estado, onde começaram seu trabalho. Em outras palavras, os irmãos haviam sido chamados antes da descoberta oficial do corpo. O Vaticano nunca se pronunciou a respeito.
A teoria da conspiração dos tradicionalistas continuava a vir à tona, até atingir um bizarro auge em 1983, no livro de Jean-Jacques Thierry, A verdadeira morte de João Paulo 1º, segundo o qual o secretário de Estado, cardeal Jean Villot, teria colocado um sósia no lugar de Paulo VI e de ter planejado o assassinato de João Paulo I, depois de o infeliz papa ter descoberto um ninho de maçons no Vaticano.
No mesmo ano foi publicado Pontífice, de Max Morgan-Witts e Gordon Thomas, que também defendia a teoria do assassinato, sugerindo que se tratava de um boato circulado pela KGB para desacreditar o Vaticano.
Também em 1983 surgiu um roman à clef, intitulado A batina vermelha, do francês Roger Peyrefitte, que combinava uma trama da KGB com uma conspiração da Máfia, dos maçons e do Banco do Vaticano. Usando para seus personagens pseudônimos mal disfarçados (o arcebispo Paul Marcinkus, por exemplo, chama-se Larvenkus), Peyrefitte sugere uma reviravolta na motivação: o papa não era um reacionário morto por liberais. Ao contrário: era um reformador liberal decidido a acabar com a corrupção. O pano de fundo da intriga era baseado em fatos bem conhecidos. O Banco do Vaticano tinha de fato fortes elos com Roberto Calvi, o ambicioso presidente do Banco Ambrosiano de Milão. Calvi, por sua vez, estava ligado a Michele Sindona, um advogado e financista siciliano, que estivera preso nos Estados Unidos e na Itália por estelionato. Ambos eram amigos do presidente do Banco do Vaticano, o notório arcebispo Paul Marcinkus, e estavam associados a Lício Gelli, um financista italiano que controlava a loja pseudomaçônica P-2.
No dia 17 de junho de 1982, após o colapso do Banco Ambrosiano, Calvi foi encontrado enforcado debaixo de uma ponte em Londres. Até hoje não se sabe se foi suicídio ou assassinato e, em 1986, Sindona morria envenenado numa prisão italiana. Em fins de 1987, Gelli fora extraditado da Suíça para Itália, onde era procurado pela Justiça.
No romance de Peyrefitte, Marcinkus e Villot assassinam o papa com veneno injetado. Ao crime estão associados Calvi, Sindona e Gelli. O motivo imediato dos prelados era evitar sua demissão. No caso de Marcinkus, sua exoneração teria posto a descoberto o envolvimento maior do Banco do Vaticano em extensas negociatas com a Máfia e os maçons.
Em 1984, o assunto ressurgiu num livro de David Yallop, Em nome de deus, com a volta de todos os personagens centrais. Assim como os autores que o precederam, Yallop, na opinião de Cornwell, é forte em motivação e mistérios circunstanciais e fraco em provas conclusivas que ligassem os prelados ao assassinato. E os teóricos da conspiração, fictícios ou reais, o que poderiam atribuir a esses homens de Deus para trair sua vocação e correr o risco da excomunhão e danação eterna, sem falar nos castigos no mundo dos vivos? Na verdade, o único com um passado não imaculado era Marcinkus, que, segundo revela Cornwell, esteve envolvido em escândalos financeiros já em 1972, quando foi investigado pelo FBI por envolvimento na falsificação de bônus no valor de US$1 bilhão. Sua amizade com Sindona e Calvi era conhecida. Os quatros autores são unânimes em afirmar que o novo papa estava de olho nele e a ponto de expô-lo. As repercussões no mundo financeiro e as implicações para as finanças do Vaticano teriam sido incalculáveis. Até onde iria Marcinkus para evitar o desastre?
Foi enfrentando esse labirinto de contradições que John Cornwell iniciou sua investigação. Avistou-se com Deus (no sentido figurado, é claro) e todo mundo. Entrevistou o próprio Marcinkus, que, entre outras coisas, afirmou jamais se ter envolvido nas finanças do Vaticano. Esteve com dom Diego Lorenzo, o secretário italiano do papa morto. Compareceu a uma missa rezada por João Paulo 2º e dele ouviu palavras de encorajamento: “Quero que você saiba que tem meu apoio e a minha bênção neste seu trabalho.”
Em janeiro, Cornwell procurou David Yallop, que entrevistara a irmã Vincenza e os irmãos Signoracci. A primeira havia morrido em junho de 1983 e os embalsamadores se mostraram tão confusos em seu depoimento a Yallop, e mais tarde a Cornwell, que a hipótese de uma esclerose avançada não podia ser afastada.
Antes de voltar a Roma, Cornwell se avistou com um cardiologista norte-americano que passava as férias em Londres. O médico foi taxativo: “Os cadáveres não ficam sentados, sorridentes e lendo.”
De regresso ao Vaticano, o autor voltou a se encontrar com o bispo John Magee, que lhe narrou um episódio ocorrido um dia antes da morte de João Paulo I. O papa acusou dores e mandou chamar a irmã Vincenza, recusando-se a ver um médico. Sentindo-se melhor, jantou bem, e Magee perguntou: “Santo Padre, já escolheu a pessoa que vai promover o retiro da próxima Quaresma?” Respondeu afirmativamente e acrescentou logo em seguida: “O tipo de retiro de que gostaria neste momento seria uma boa morte.” A morte, segundo Magee, era um dos assuntos constantes de suas conversas. Seu papado seria de curta duração e ele seria substituído “pelo estrangeiro”. E citou uma prece: “Senhor, concede-me a graça de aceitar a morte que me abaterá.” No dia seguinte, Deus atendeu o pedido daquele homem modesto e bondoso, cujo mais constante pedido, formulado milhares de vezes durante o seu curto reinado, era: “Senhor, por favor, leva-me.” A magnitude de sua missão o assustava.
Num dos últimos parágrafos de Um ladrão na noite, John Cornwell diz, mas não assegura: “João Paulo, quase com certeza, morreu de embolia pulmonar, devido a uma condição de coagulabilidade anormal do sangue. Necessitava de descanso e medicação monitorada. Se estes tivessem sido receitados, ele, quase sem dúvida, teria sobrevivido. As advertências de uma doença mortal estavam claras, à vista de todos. Pouco ou nada foi feito para socorrê-lo ou salvá-lo.”
Como sempre, as doenças, vistas em retrospecto, são bem mais fáceis de diagnosticar e de curar.
Texto extraído da revista Manchete, de 1989, número 1.942, ano 38, páginas 30 a 34

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