O Príncipe: 500 anos
Falem mal, mas falem de mim
Por Antonio Lassance*
Há
500 anos (1513), Nicolau Maquiavel (1469-1527) escreveu “O Príncipe”. O livro
passou de proscrito a célebre. Seu autor, de renegado, passou a ser
reverenciado, com direito a estátua na “Galleria degli Uffizi” (Galeria dos
Ofícios), em sua cidade natal. Mais do que relembrar a ocasião do quingentésimo
aniversário, é bom entender como o maquiavelismo eternizou Maquiavel.
“O
Príncipe” não era um livro propriamente dito. Era um manuscrito. Livros eram
ainda coisa rara e cara, em uma época em que a palavra impressa engatinhava e
poucos sabiam ler. Não era destinado ao público em geral, mas a uma pessoa em
particular, o governante de Florença, Lorenzo, chefe dos Médici, rica e
poderosa família que havia retomado o domínio sobre a cidade, afastado seus
adversários, dado fim à república e iniciado uma espécie de principado.
Aproveitando a oportunidade, Maquiavel escreve sobre principados. Lorenzo di
Piero de Medici era neto do Lorenzo a quem se conhecia como “O Magnífico”.
Maquiavel não se fez de rogado e conferiu a mesma magnificência ao neto, o que
ainda hoje dá margem a confusões sobre a qual dos Lorenzos ele se referia.
Maquiavel
havia caído em desgraça. Por conta de seu anterior papel político proeminente
de Segundo Chanceler daquela cidade-estado, sua figura estava nublada pela
desconfiança. No cargo diplomático, ele era um informante e um negociador de
conflitos e interesses decisivos. “O Príncipe” era uma carta de intenções pela
qual Maquiavel mostrava suas credenciais de conselheiro qualificado e sua
missão de servir ao poder.
Naquele
momento, era improvável que Maquiavel ganhasse qualquer projeção maior que a de
alguns de seus ilustres conterrâneos. Como literato, nunca seria um Dante, o
autor de “A Divina Comédia”. Entre seus contemporâneos, havia o célebre Amerigo
Vespucci, aquele que desfez a ideia de que as terras achadas por Cristóvão
Colombo seriam as costas da Ásia, sendo na verdade um Novo Mundo - descoberta
que renderia a “Américo” a homenagem de ter seu nome associado ao novo
continente, a América. Maquiavel, ao contrário, arrastava-se para ser
reabilitado.
“O
Príncipe” só se tornaria público em 1532, quando seu autor já estava morto. Não
tardaria a se tornar um livro proibido pela Igreja Católica, entrando para o
“Index Librorum Prohibitorum” (“Índice dos Livros Proibidos”). Maquiavel
atribuía a Roma e ao Papa uma péssima influência sobre a Península Itálica, um fator
de divisão, e citava o Papa Alexandre VI (Rodrigo Bórgia) como “exemplo” de
como o baluarte da moral e dos bons costumes era capaz de usar a violência, o
dinheiro e a manipulação para manter-se no poder.
“O
Príncipe” sequer é a obra melhor estruturada de Maquiavel, comparada aos
"Comentários" (“Discorsi”) que fez tendo por pano de fundo a história
da República Romana (baseada no relato do historiador romano Tito Lívio), que,
mesmo incompleto, se revela um tratado bem mais sistemático sobre a política.
Hoje,
Maquiavel é mais conhecido do que Dante e Vespúcio. O feitiço agraciou o
feiticeiro. A fama de proibido o ajudou a tornar-se popular, assim como seu
sentido mais prático e menos erudito. Seu desvendamento dos métodos usuais da
política tornou o livro obrigatório para a direita e a esquerda, para liberais
e marxistas. A análise crua e dura tecida a respeito dos poderosos passou a ser
um guia obrigatoriamente reconhecido pelos próprios poderosos e pelos que
ousavam combatê-los. Napoleão leu “O Príncipe”, e suas anotações aparecem
publicadas em uma edição muito popular nas bancas de jornais e revistas.
Revolucionários, de Rousseau a Gramsci, atribuíram a Maquiavel revelar segredos
que até então permaneciam entre quatro paredes.
A
certidão de nascimento da ciência da política
Para
além da fama, a grande questão é a de saber se Maquiavel permanece ou não
atual. Pelo menos três atributos essenciais ajudaram à sua sobrevida.
O
primeiro é que a obra maquiavélica contribuiu para que a política passasse a
ser tratada como um objeto de investigação específica. “O Príncipe” acabou se
tornando a certidão de nascimento de uma ciência da política. Gregos e romanos
também têm obras fundamentais, mas sua política era indistinta da vida social
(a “polis”) e pensada como um assunto da Filosofia e da História, e não como
uma disciplina autônoma. Maquiavel tem uma visão filosófica e histórica, mas
por suas mãos a política ganhou vida própria e regras particulares. Como
renascentista, ele resgatou a tradição clássica, mas criou algo novo.
Seu
grande embate não era com os clássicos, e sim com seus contemporâneos,
principalmente, com o moralismo e a pregação religiosa. Os mandamentos de “não
roubar”, “não matar”, “não usar o santo nome em vão”, “não levantar falso
testemunho” (não mentir) eram bons para a imagem, mas não eram as regras da
política. Aliás, tais mandamentos eram descumpridos por todos na luta pelo
poder, a começar pela própria Igreja.
Em
geral, se tem a ideia errônea de que Maquiavel prioriza os métodos cruéis,
ardilosos, infames – e todos os demais adjetivos encontrados como
qualificativos de “maquiavélico”, em qualquer dicionário. O pensador florentino
deixava claro que eles eram usuais daquela época, dispensando sua recomendação.
Cita inúmeros exemplos a esse respeito. Na verdade, propõe comedimento e se
esforça por dizer que tais métodos não deveriam ser utilizados
indiscriminadamente, pois poderiam se mostrar contraproducentes. Mesmo a
violência tinha regras e deveria aguardar por sua ocasião.
Em
um momento em que todos os poderosos e aspirantes a poderosos se comportavam
como leões, até os Papas (o de 1513, por coincidência, se chamava Leão X), ele
dizia que as ocasiões muitas vezes requeriam raposas. Portanto, menos violência
e mais astúcia. Para a barbárie das disputas políticas da época, o livro tinha
até um papel civilizatório.
Os
fins e os meios
Em
“O Príncipe”, não existe a frase de que os fins justificam os meios. Nem existe
a ideia de que qualquer meio serve para se chegar à vitória. Maquiavel fez uma
lista de recomendações sobre os métodos e apontou que alguns tinham um alto
custo para o governante e poderiam gerar um ódio generalizado contra sua
pessoa. Sendo assim, deveriam ser evitados, pois levariam à ruína, e não à
glória.
É
mais apropriado dizer que, para Maquiavel, o critério de certo e errado, na
política, é o êxito. Não é o vale tudo. Se os métodos empregados não permitem
chegar e se manter no poder, não são bons métodos.
“Trate
o príncipe, pois, de vencer e conservar o Estado. Os meios que empregar serão
sempre julgados honrosos e louvados por todos”.
É
esta última frase que deu origem à interpretação de que os fins justificam os
meios. Interpretação errada. Para Maquiavel, o meio empregado faz toda a
diferença para a vitória ou a derrota. É o emprego correto dos meios que ele
define como virtude (“virtú”) na política. Fazer a coisa certa no momento certo
(a “fortuna”, ou oportunidade) daria ao príncipe um destino grandioso.
Outro
atributo importante do livro foi ter cravado o conceito de Estado e ter
estabelecido uma distinção que, por muito tempo, foi decisiva para explicar
grandes diferenças entre regimes políticos. “O Príncipe” abria suas explicações
dizendo que, até então, todos os Estados (com maiúsculas) tinham sido ou
repúblicas ou monarquias (principados). Depois que as monarquias foram
derrubadas ou amainadas pela constitucionalização de seus poderes, a distinção
entre presidencialismo e parlamentarismo passou a ser a mais usual.
O
terceiro atributo genial de “O Príncipe” foi ter sido pioneiro na análise do
poder como exercício da representação. A permanência no poder dependia de que o
líder fosse a encarnação de uma vontade coletiva. Só conquistaria grandeza se
seus projetos fossem ousados o suficiente para angariar respaldo entre suas
elites e, mais relevante, apoio popular, inclusive contra elites que abrigavam
seus adversários em potencial. “O mundo é formado por pessoas comuns”, dizia. É
essa dimensão que deu a Maquiavel certa imagem de pensador democrático. Ele foi
resgatado por Rousseau, no século XVIII, como aquele que ensinou ao povo como
os príncipes governavam e que expôs a perversidade por trás do absolutismo.
A
atualidade de Maquiavel
O
que permanece atual em Maquiavel é sua compreensão realista da política. Sua
lição fundamental é a de que o ofício do cientista político é o de desvendar.
Para tanto, é preciso identificar os atores em disputa, apontar seus métodos de
ação, evidenciar o papel e a orientação dada por suas lideranças políticas,
desnudar os interesses envolvidos.
O
pensador de Florença proporciona uma visão dinâmica do poder. O resultado da
ação política depende não só da posição e dos recursos dos grupos sociais em
luta, mas da correção das decisões tomadas por atores centrais e da reação que
elas desencadeiam.
O
povo reaparece em Maquiavel como o ator político fundamental, em torno do qual
orbitam todos os demais. A sorte (ou “fortuna”) dos contendores depende de sua
capacidade de dar voz e sentido de Estado às aspirações populares.
Podemos
ainda nos servir de Maquiavel para apostar que toda crise aguda de regime é
acompanhada de um processo de desmascaramento da velha política. Métodos
perversos, bastante conhecidos, passam a gerar estranhamento e revolta popular
quando seus resultados se mostram pífios e incapazes de garantir adesão em
larga escala.
A
alta dose de realismo oferecida por Maquiavel não deixa de ser um ingrediente
básico para qualquer nova utopia política. Por isso, “O Príncipe”, 500 anos
depois, ainda é uma leitura que vale a pena.
*Antonio
Lassance é cientista político e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (IPEA). As opiniões expressas neste artigo não refletem
necessariamente opiniões do Instituto. ('pescado' do blog 'Com Texto Livre')
Do Blog do Júlio Garcia.
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