Existe um lugar, nas entranhas do Centro-Oeste,
onde a vetusta imagem do ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal
Federal, nada tem a ver com aquela que lhe é tão cara, de paladino dos valores
republicanos, guardião do Estado de Direito, diligente defensor da democracia
contra a permanente ameaça de um suposto – e providencial – “Estado policial”.
Em Diamantino, a 208 quilômetros de Cuiabá, em Mato Grosso, o ministro é a parte
mais visível de uma oligarquia nascida à sombra da ditadura militar (1964-1985),
mas derrotada, nas eleições passadas, depois de mais de duas décadas de
dominação política.
O atual prefeito de Diamantino, o veterinário
Francisco Ferreira Mendes Júnior, de 50 anos, é o irmão caçula de Gilmar Mendes.
Por oito anos, ao longo de dois mandatos, Chico Mendes, como é conhecido desde
menino, conseguiu manter-se na prefeitura, graças à influência política do irmão
famoso. Nas campanhas de 2000 e 2004, Gilmar Mendes, primeiro como
advogado-geral da União do governo Fernando Henrique Cardoso e, depois, como
ministro do STF, atuou ostensivamente para eleger o irmão. Para tal, levou a
Diamantino ministros para inaugurar obras e lançar programas, além de circular
pelos bairros da cidade, cercado de seguranças, a pedir votos para o
irmão-candidato e, eventualmente, bater boca com a oposição.
Em setembro do ano passado, o ministro Mendes foi
novamente escalado pelo irmão Chico Mendes para garantir a continuidade da
família na prefeitura de Diamantino. Depois de se ancorar no grupo político do
governador Blairo Maggi, os Mendes também migraram do PPS para o PR, partido do
vice-presidente José Alencar, e ingressaram na base de apoio do presidente Luiz
Inácio Lula da Silva – a quem, como se sabe, Mendes costuma, inclusive, chamar
às falas, quando necessário. Maggi e os Mendes, então, fizeram um pacto político
regional, cujo movimento mais ousado foi a assinatura, em 10 de setembro de
2007, do protocolo de intenções para a instalação do Grupo Bertin em Diamantino,
às vésperas do ano eleitoral de 2008.
Considerado um dos gigantes das áreas
agroindustrial, de infra-estrutura e de energia, o Bertin acabou levado para
Diamantino depois de instalado um poderoso lobby político capitaneado por
Mendes, então vice-presidente do STF, com o apoio do governador Blairo Maggi, a
quem coube a palavra final sobre a escolha do local para a construção do
complexo formado por um abatedouro, uma usina de biodiesel e um curtume. O
investimento previsto é de 230 milhões de reais e a perspectiva de criação de
empregos chega a 3,6 mil vagas. Um golpe de mestre, calcularam os Mendes, para
ajudar a eleger o vereador Juviano Lincoln, do PPS, candidato apoiado por Chico
Mendes à sucessão municipal.
No evento de assinatura do protocolo de
intenções, Gilmar Mendes era só sorrisos ao lado do ministro da Agricultura,
Reinhold Stephanes, a quem levou a Diamantino para prestigiar a gestão de Chico
Mendes, uma demonstração de poder recorrente desde a primeira campanha do irmão,
em 2000. Durante a cerimônia, empolgado com a presença do ministro e de dois
diretores do Bertin, Blairo Maggi conseguiu, em uma só declaração, carimbar o
ministro Mendes como lobista e desrespeitar toda a classe política
mato-grossense. Assim falou Maggi: “Gilmar Mendes vale por todos os deputados e
senadores de Mato Grosso”. Presente no evento estava o prefeito eleito de
Diamantino, Erival Capistrano (PDT), então deputado estadual. “O constrangimento
foi geral”, lembra Capistrano.
Ainda na festa, animado com a atitude de Maggi, o
deputado Wellington Fagundes (PR-MT) aproveitou para sacramentar a ação do
presidente do STF. “O ministro Gilmar Mendes tem usado o seu prestígio para
beneficiar Mato Grosso, apesar de não ser nem do Executivo nem do Legislativo”,
esclareceu, definitivo. Ninguém, no entanto, explicou ao público e aos eleitores
as circunstâncias da empresa que tão alegremente os Mendes haviam conseguido
levar a Diamantino.
O Grupo Bertin, merecedor de tanta dedicação do
presidente do STF, foi condenado pelo Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade), em novembro de 2007, logo, dois meses depois da assinatura do
protocolo, por formação de cartel com outros quatro frigoríficos. Em 2005, as
empresas Bertin, Mataboi, Franco Fabril e Minerva foram acusadas pela Secretaria
de Direito Econômico do Ministério da Justiça de combinar os preços da
comercialização de gado bovino no País. Foi obrigado a pagar uma multa
equivalente a 5% do faturamento bruto, algo em torno de 10 milhões de reais. No
momento em que Gilmar Mendes e Blairo Maggi decidiram turbinar a campanha
eleitoral de Diamantino com o anúncio da construção do complexo agroindustrial,
o processo do Bertin estava na fase final.
Ainda assim, quando a campanha eleitoral de
Diamantino começou, em agosto passado, o empenho do ministro Mendes para levar o
Bertin passou a figurar como ladainha na campanha do candidato da família,
Juviano Lincoln. Em uma das peças de rádio, o empresário Eraí Maggi, primo do
governador, ao compartilhar com Chico Mendes a satisfação pela vinda do
abatedouro, manda ver: “Tenho falado pro Gilmar, seu irmão, sobre isso”. Em uma
das fazendas de soja de Eraí Maggi, o Ministério do Trabalho libertou, neste
ano, 41 pessoas mantidas em regime de escravidão.
Tanto esforço mostrou-se em vão eleitoralmente.
Em outubro passado, fustigado por denúncias de corrupção e desvio de dinheiro, o
prefeito Chico Mendes foi derrotado pelo notário Erival Capistrano, cuja única
experiência política, até hoje, foi a de deputado estadual pelo PDT, por 120
dias, quando assumiu o cargo após ter sido eleito como suplente. “Foi a vitória
do tostão contra o milhão”, repete, como um mantra, Capistrano, a fim de
ilustrar a maneira heróica como derrotou, por escassos 418 votos de diferença, o
poder dos Mendes em Diamantino. De fato, não foi pouca coisa.
Em Diamantino, a família Mendes se estabeleceu
como dinastia política a partir do golpe de 1964, sobretudo nos anos 1970, época
em que os militares definiram a região, estrategicamente, como porta de entrada
para a Amazônia. O patriarca, Francisco Ferreira Mendes, passou a alternar
mandatos na prefeitura com João Batista Almeida, sempre pela Arena, partido de
sustentação da ditadura. Esse ciclo foi interrompido apenas em 1982, quando o
advogado Darcy Capistrano, irmão de Erival, foi eleito, aos 24 anos, e
manteve-se no cargo por dois mandatos, até 1988. A dobradinha Mendes-Batista
Almeida só voltaria a funcionar em 1995, bem ao estilo dinástico da elite rural
nacional, com a eleição, primeiro, de João Batista Almeida Filho. Depois, em
2000, de Francisco Ferreira Mendes Júnior, o Chico Mendes.
Gilmar nasceu em Diamantino em 30 de dezembro de
1955. O lugar já vivia tempos de franca decadência. Outrora favorecida pelo
comércio de diamantes, ouro e borracha por mais de dois séculos, a cidade natal
do atual presidente do STF se transformou, a partir de meados do século XX, num
município de economia errática, pobre e sem atrativos turísticos, dependente de
favores dos governos federal e estadual. Esse ambiente de desolação social,
cultural e, sobretudo, política favoreceu o crescimento de uma casta coronelista
menor, se comparada aos grandes chefes políticos do Nordeste ou à aristocracia
paulista do café, mas ciosa dos mesmos métodos de dominação.
Antes do presidente do STF, a figura pública mais
famosa do lugar, com direito a busto de bronze na praça central da cidade, para
onde os diamantinenses costumam ir para fugir do calor sufocante do lugar, era o
almirante João Batista das Neves. Ele foi assassinado durante a Revolta da
Chibata, em 1910, por marinheiros revoltosos, motivados pelos maus-tratos que
recebiam de oficiais da elite branca da Marinha, entre eles, o memorável cidadão
diamantinense.
Na primeira campanha eleitoral de Chico Mendes,
em 2000, o então advogado-geral da União, Gilmar Mendes, conseguiu levar
ministros do governo Fernando Henrique Cardoso para Diamantino, a fim de dar
fôlego à campanha do irmão. Um deles, Eliseu Padilha, ministro dos Transportes,
voltou à cidade, em agosto de 2001, ao lado de Mendes, para iniciar as obras de
um trecho da BR-364. Presente ao ato, prestigiado como sempre, estava o irmão
Chico Mendes. No mesmo mês, um dos principais assessores de Padilha, Marco
Antônio Tozzati, acusado de fazer parte de uma quadrilha de fraudadores que
atuava dentro do Ministério dos Transportes, juntou-se a Gilmar Mendes para
fundar a Faculdade de Ciências Sociais e Aplicadas de Diamantino, a Uned.
O ministro Mendes, revelou CartaCapital na edição
516 (leia o post Gilmar: às favas a ética), é acionista de outra escola, o
Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), que obteve contratos sem
licitação com órgãos públicos e empréstimos camaradas de agências de fomento.
Não é de hoje, portanto, que o ensino, os negócios e a influência política
misturam-se oportunamente na vida do presidente do Supremo.
No caso da Uned, o irmão-prefeito bem que deu uma
mãozinha ao negócio do irmão. Em 1º de abril de 2002, Chico Mendes sancionou uma
lei que autorizava a prefeitura de Diamantino a reverter o dinheiro recolhido
pela Uned em diversos tributos, entre os quais o Imposto Predial e Territorial
Urbano (IPTU), Imposto Sobre Serviços (ISS) e sobre alvarás, em descontos nas
mensalidades de funcionários e “estudantes carentes”. Dessa forma, o prefeito,
responsável constitucionalmente por incrementar o ensino infantil e fundamental,
mostrou-se estranhamente interessado em colocar gente no ensino superior da
faculdade do irmão-ministro do STF.
Em novembro de 2003, o jornalista Márcio Mendes,
do jornal O Divisor, de Diamantino, entrou com uma representação no Ministério
Público Estadual de Mato Grosso, para obrigar o prefeito a demonstrar,
publicamente, que funcionários e “estudantes carentes” foram beneficiados com a
bolsa de estudos da Uned, baseada na renúncia fiscal – aliás, proibida pela Lei
de Responsabilidade Fiscal – autorizada pela Câmara de Vereadores. Jamais obteve
resposta. O processo nunca foi adiante, como, de praxe, a maioria das ações
contra Chico Mendes. Atualmente, Gilmar Mendes está afastado da direção da Uned.
É representado pela irmã, Maria Conceição Mendes França, integrante do conselho
diretor e diretora-administrativa e financeira da instituição.
O futuro prefeito, Erival Capistrano, estranha
que nenhum processo contra Chico Mendes tenha saído da estaca zero e atribui o
fato à influência do presidente do STF. Segundo Capistrano, foram impetradas ao
menos 30 ações contra o irmão do ministro, mas quase nada consegue chegar às
instâncias iniciais sem ser, irremediavelmente, arquivado. Em 2002, a
Procuradoria do TCE mato-grossense detectou 38 irregularidades nas contas da
prefeitura de Diamantino, entre elas a criação de 613 cargos de confiança. A
cidade tem 19 mil habitantes. O Ministério Público descobriu, ainda, que Chico
Mendes havia contratado quatro parentes, inclusive a mulher, Jaqueline
Aparecida, para o cargo de secretária de Promoção Social, Esporte e Lazer.
No mesmo ano de 2002, o vereador Juviano Lincoln
(ele mesmo, o candidato da família) fez aprovar uma lei municipal, sancionada
por Chico Mendes, para dar o nome de “Ministro Gilmar Ferreira Mendes” à avenida
do aeródromo de Diamantino. Dois cidadãos diamantinenses, o advogado Lauro Pinto
de Sá Barreto e o jornalista Lúcio Barboza dos Santos, levaram o caso ao Senado
Federal. À época, o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), não aceitou a
denúncia. No Tribunal de Justiça de Mato Grosso, a acusação contra a avenida
Ministro Gilmar Mendes também não deu resultados e foi arquivada, no ano
passado.
A lentidão da polícia e da Justiça na região,
inclusive em casos criminais, acaba tendo o efeito de abrir caminho a várias
suspeitas e deixar qualquer um na posição de ser acusado – ou de ver o assunto
explorado politicamente.
Em 14 de setembro de 2000, na reta final da
campanha eleitoral, a estudante Andréa Paula Pedroso Wonsoski foi à delegacia da
cidade para fazer um boletim de ocorrência. Ao delegado Aldo Silva da Costa,
Andréa contou, assustada, ter sido repreendida pelo então candidato do PPS,
Chico Mendes, sob a acusação de tê-lo traído ao supostamente denunciar uma troca
de cestas básicas por votos, ao vivo, em uma emissora de rádio da cidade. A
jovem, de apenas 19 anos, trabalhava como cabo eleitoral do candidato, ao lado
de uma irmã, Ana Paula Wonsoski, de 24 – esta, sim, responsável pela
denúncia.
Ao tentar explicar o mal-entendido a Chico
Mendes, em um comício realizado um dia antes, 13 de setembro, conforme o
registro policial, alegou ter sido abordada por gente do grupo do candidato e
avisada: “Tome cuidado”. Em 17 de outubro do mesmo ano, 32 dias depois de ter
feito o BO, Andréa Wonsoski resolveu participar de um protesto político.
Ela e mais um grupo de estudantes foram para a
frente do Fórum de Diamantino manifestar contra o abuso de poder econômico nas
eleições municipais. A passeata prevista acabou por não ocorrer e Andréa, então,
avisou a uma amiga, Silvana de Pino, de 23 anos, que iria tentar pegar uma
carona para voltar para casa, por volta das 19 horas. Naquela noite, a estudante
desapareceu e nunca mais foi vista. Três anos depois, em outubro de 2003, uma
ossada foi encontrada por três trabalhadores rurais, enterrada às margens de uma
avenida, a 5 quilômetros do centro da cidade. Era Andréa Wonsoski.
A polícia mato-grossense jamais solucionou o
caso, ainda arquivado na Vara Especial Criminal de Diamantino. Mesmo a análise
de DNA da ossada, requerida diversas vezes pela mãe de Andréa, Nilza Wonsoski,
demorou outros dois anos para ficar pronta, em 1º de agosto de 2005. De acordo
com os três peritos que assinam o laudo, a estudante foi executada com um tiro
na nuca. Na hora em que foi morta, estava nua (as roupas foram encontradas
queimadas, separadas da ossada), provavelmente por ter sido estuprada antes.