"A Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo" Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 |
A Polícia Federal identificou cerca de 200 conversas telefônicas entre o
diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, Policarpo Júnior, e o
contraventor. A divulgação dessas escutas mostra que Cachoeira pautava
a publicação da editora Abril, que se deixava levar pelos interesses
políticos de um empresário fortemente ligado ao senador Demóstenes
Torres (ex-DEM).
Diante desse cenário, alguns parlamentares têm defendido a convocação
de Policarpo para depor na CPI, mesmo que o relator Odair Cunha (PT-MG)
já tenha rejeitado pedido de informações a respeito. Para o presidente
da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, a
revista precisa explicar o que guiou sua prática jornalística nesse
episódio. “A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar
como ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com
descompromisso e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e
técnicos consagrados pelo jornalismo”, entende.
Nesta entrevista ao Sul21, Schröder avalia a conduta da revista
nesse e em outros episódios e defende a necessidade de um marco
regulatório para a comunicação no país.
“Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável”
O que a CPI do Cachoeira pode nos dizer sobre a mídia brasileira?
A CPI está nos mostrando que a mídia é uma instituição como qualquer
outra e precisa estar submetida a princípios públicos, na medida em que
a matéria-prima do seu trabalho é pública: a informação. Quanto menos
pública essa instituição for e mais submetida aos interesses privados
dos seus gestores ela estiver, mais comprometida ficará a natureza do
jornalismo. Como qualquer instituição, a mídia não está acima do bem e
do mal, dos preceitos republicanos do Estado de Direito e do interesse
público. Do ponto de vista político, a Veja confundiu o público com o
privado. Do ponto de vista jornalístico, comete um pecado inaceitável:
estabelecer uma relação promíscua entre o jornalista e a fonte. Não é
só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e
encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente
inaceitável. Todo jornalista sabe, desde o primeiro semestre da
faculdade, que a fonte é um elemento constituidor da notícia na medida
em que ela for tratada como fonte. A fonte tem interesses e, para que
eles não contaminem a natureza da informação, precisam ser filtrados
pelo mediador, que é o jornalista. A fonte, ao mesmo tempo em que dá
credibilidade e constitui elemento de pluralidade na matéria, por outro
lado, se não for mediada e relativizada pelo jornalista, pode
contaminar o conteúdo.
"Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos" Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 |
Em que pontos a relação entre Policarpo Júnior e Cachoeira extrapolaram uma relação saudável entre repórter e fonte?
Ele não tratou o Cachoeira como fonte. O problema é um jornalista ou
uma empresa jornalística atribuir a alguém uma dimensão de fonte única,
negociando com ela o conteúdo e a dimensão da matéria e,
principalmente, conduzindo a Veja para uma atuação de partido político.
Esse é um pecado que a Veja vem cometendo há algum tempo. A oposição
no Brasil é muito frágil. Por não existir uma oposição forte, a
imprensa assume esse papel, o que é uma distorção absoluta. A imprensa
não tem que assumir essa função, a sociedade não atribui a ela uma
dimensão político-partidária, como a Veja se propõe. A Veja acaba de nos
produzir um dos piores momentos do jornalismo. Quando houve o episódio
da tentativa de invasão do apartamento do ex-ministro José Dirceu (PT)
por um repórter da Veja, eu escrevi um artigo dizendo que, assim como
Watergate tinha sido o grande momento do jornalismo no mundo, a atuação
da Veja no quarto de Dirceu foi um anti-Watergate. Mal sabia eu que
teríamos um momento ainda pior. Não foi a ação individual de um repórter
sem capacidade de avaliação. Foi uma ação premeditada e sistêmica de
uma empresa de comunicação, de um chefe que conduzia seu repórter para
uma ação imoral, tangenciando perigosamente a ilegalidade.
“A Veja é uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio”
O mesmo pode ser dito para o episódio recente entre Policarpo Júnior e Cachoeira?
Neste momento, isso se consolida. É uma revista que coloca em jogo a
matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um
suicídio, inclusive do ponto de vista de um negócio jornalístico. A não
ser que a Veja esteja contando com um outro tipo de financiamento, ou
já esteja sendo subsidiada por outro mecanismo que não seja decorrente
da credibilidade e da inserção no público. Não temos dados concretos
sobre isso, mas tudo leva a crer que, nesse momento, o financiamento da
Veja esteja se dando por outro caminho. O comprometimento e o
alinhamento inescrupuloso da revista a uma determinada visão de mundo
conduz à ideia de que a Veja possa ter aberto mão de ser um veículo de
comunicação para ser um instrumento político com financiamento deste
campo.
Mas a revista já passou por períodos em que era mais comprometida com o jornalismo. Como ocorreu essa mudança?
Não é de agora que a Veja vem dando indícios de que abre mão de um
papel de referência jornalística. A Veja foi fundamental para a
redemocratização do país, foi referência para jornalistas de várias
gerações e teve em sua direção homens como Mino Carta. Depois de um
certo tempo, a revista começa a alinhar-se a um determinado grupo
social brasileiro. É claro que os editores da revista têm opiniões e
cumprem um papel conservador no país. Tudo bem que isso aconteça nas
dimensões editoriais. Agora, que se reserve ao jornalismo informativo um
espaço de discussão com contrapontos. Princípios elementares do
jornalismo foram sendo abandonados e essa revista, que foi importante
para a democracia e para o jornalismo, passa a ser um exemplo ruim que
precisa ser enfrentado.
"Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor" Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 |
Como o senhor vê a possibilidade de Policarpo Júnior ser convocado para depor na CPI?
Tenho visto declarações de alguns políticos, como da senadora Ana
Amélia Lemos (PP-RS), que diz que o envolvimento do Policarpo nisso
representa um ataque à imprensa. Os jornalistas não estão acima da lei e
não podem estar acima dos princípios republicanos. Se ele for
convocado pela CPI, tem o direito de não ir. Se ele for, tem o direito
de exercer a prerrogativa do sigilo de fonte. Mas a convocação não
representa uma ameaça. A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É
preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas
veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a
princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo. Questionar
isso é fundamental. Os jornalistas e a academia têm obrigação de fazer
esse questionamento.
Nesse sentido, não seria válido também convocar o presidente do Grupo Abril, Roberto Civita?
Parece que seria deslocar o problema. Na CPI, a Veja é um dos pontos. O
problema é a corrupção entre o Cachoeira e o Parlamento brasileiro. Um
depoimento do Civita geraria um debate que desviaria os trabalhos da
CPI. Não há dúvida de que a Veja praticou um mau jornalismo e deve
prestar contas. A CPI tem gravações de integrantes da revista com o
bicheiro. Que eles sejam convocados, então. Não é pouca coisa trazer o
chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor.
“A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos”
As críticas à Veja costumam ser rebatidas
com argumentos que valorizam o trabalho supostamente investigativo
feito pela revista, com diversas denúncias de corrupção. Entretanto, as
gravações entre Policarpo e Cachoeira revelam como funcionava a
engenharia que movia algumas dessas denúncias.
Há uma certa sensação de que estamos vivendo um momento de corrupção
absoluta no país. E isso está longe de ser verdade. Basta olhar a
história e ver que agora temos instituições democráticas funcionando. A
imprensa cumpre um papel democrático e fiscalizador importante com a
denúncia. O problema é que alguns setores, ao fazerem denúncias,
atribuem um papel absoluto à ideia da corrupção. No caso da Veja, o
pior de tudo é que a própria revista estava envolvida. Não é só um mau
jornalismo sendo praticado. Há indícios perigosos de uma locupletação –
que não precisa ser necessariamente financeira. Pode ser uma troca de
favores, onde o que a Veja ganhou foi a constituição de argumentos para
uma atuação política, não jornalística. Como se fosse o partido
político que a oposição não consegue ser. Se a imprensa se propõe a
esse tipo de coisa, volta a um patamar de atuação do século XVIII. Se é
para ser assim, que a revista mude de nome e assuma o alinhamento a
determinado partido. Agora, ao se apresentar como um espaço
informativo, a Veja precisa refletir a complexidade do espaço político
brasileiro. Se ela não faz isso, está comprometendo o jornalismo e
tangenciando uma possibilidade de ilegalidade que, se houver, precisa
ser esclarecida. A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos.
A revelação desse modus-operandi da Veja
está gerando uma discussão quase inédita no país: a mídia está
debatendo a mídia. A revista Carta Capital tem dedicado diversas capas
ao tema e a Record já fez uma reportagem sobre o assunto. É um fenômeno
comum em outros países, mas até então não ocorria no Brasil.
Nos anos 1980, quando a Fenaj propôs uma linha para a democratização da
comunicação, partimos da compreensão de que a democratização do país
não havia conseguido chegar à mídia. O sistema midiático brasileiro, ao
contrário de todas as outras instituições, não havia sido
democratizado. Temos cinco artigos da Constituição nessa área que não
estão regulamentados. Durante 30 anos tivemos diversas iniciativas de
tentar construir esse debate. A lógica da regulamentação existe em
todos os países do mundo. Mas, no Brasil, isso enfrenta resistências de
uma mídia poderosa, que fez os dois primeiros presidentes da República
após a democratização. Sarney e Collor são dois políticos que saíram
dos quadros da Rede Globo. Na presidência do Congresso tivemos outros
afilhados da Rede Globo, como Antonio Carlos Magalhães, que também foi
ministro das Comunicações. A mídia não só está concentrada, no sentido
de ter monopólios, como está desprovida de qualquer controle público.
Está absolutamente entregue à ideia de que a liberdade de expressão é a
liberdade de expressão dos donos da mídia. Enquanto que o preceito
constitucional diz que a liberdade de expressão é do povo, e o papel da
mídia é assegurar isso.
“O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra”
Quanto se conseguiu avançar nesse debate desde então?
"As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se" Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21 |
Estamos há 30 anos pautando esse debate até chegarmos a Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009).
A Fenaj consegue constituir a ideia de que esse debate precisa ser
público, já que ele é omitido pela mídia, que atribui à essa discussão
uma tentativa de censura. A Confecom, no início, teve a anuência das
empresas. Eu fui junto com os representantes da RBS e da Globo aos
ministros Helio Costa (Comunicações), Tarso Genro (Justiça) e Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência)
propor a conferência. As empresas compreendiam que, naquele momento, a
telefonia estava chegando e ameaçava um modelo de negócios. Mas,
durante a Confecom, a Rede Globo e todos os seus aliados se retiraram,
tentando sabotar mais uma vez o debate. O espírito conservador está no
DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio
não deve existir nenhuma regra. Acostumou-se a impor seus interesses ao
país e, portanto, é ontológicamente contra qualquer regra. Naquele
momento em que a Globo se retirou da Confecom ficou claro que não é
possível contar com esses empresários para qualquer tipo de tentativa
de atribuir à comunicação no Brasil uma dimensão pública, humana e
nacional, regida por princípios culturais, democráticos e educacionais,
não simplesmente pelo lucro fácil e rápido.
O editorial do jornal O Globo defendendo a
revista Veja é um indício de que há um corporativismo muito grande
entre os donos da mídia tradicional?
O princípio que os une é aquele verbalizado pela Sociedade
Interamericana de Imprensa: Lei melhor é lei nenhuma. As empresas
alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se.
Abrigadas no manto de uma liberdade de expressão apropriada por elas,
protegem seus interesses e seus negócios, atuando de uma maneira
corporativa e antipública. O jornalismo é fruto de uma atividade
profissional, não é fruto de um negócio. Jornalismo não é venda de
anúncios. Jornalismo é, essencialmente, o resultado do trabalho dos
jornalistas. Portanto, a obrigação dos jornalistas é denunciar sempre
que o jornalismo for maculado, como ocorreu com a Veja. Seria, também,
uma obrigação das empresas jornalísticas, na medida em que elas não
estejam envolvidas com esse tipo de prática. Ao tornarem-se cúmplice e
acobertarem esse tipo de prática, as empresas aliam-se a elas. Essas
empresas disputam o mercado, mas protegem-se no que consideram
essencial, no sentido de inviabilizar a ideia de que exercem uma
atividade submetida aos interesses públicos, como qualquer outra.
Samir Oliveira
No Sul21
Samir Oliveira
No Sul21
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