Do Conversa Afiada - Publicado em 12/10/2012
O Conversa Afiada publica texto de Mauro Santayana:
Maquiavel:“quando se violam as leis por uma boa causa, autoriza-se a sua violação por uma causa qualquer”.
O Conversa Afiada publica texto de Mauro Santayana:
O STF e os precedentes perigosos
por Mauro Santayana
Nunca tivemos, no Brasil e
alhures, uma justiça perfeita. A esse respeito permanece como paradigma
da dúvida do julgamento político a condenação de Sócrates. A acusação
que lhe fizeram foi de impiedade, o que, no léxico de então, mais do que
hoje, significava heresia diante dos deuses: Sócrates estaria
pervertendo os jovens com seus ensinamentos, tidos também como
antidemocráticos. As lições de Sócrates sempre foram da dúvida, da
incessante busca do conhecimento, mesmo que o conhecimento fosse, em sua
inteligência, inalcançável. Ele dizia saber que nada sabia.
Nesse pensamento negativo
radical, recriado e elaborado por Platão, estaria, em ultima ratio – à
qual não se atreveu Platão – a suprema heresia de duvidar da existência
dos deuses. Os deuses eram os fiadores da democracia, e quando esse
contrato com o mito, em que se fundava a sociedade, rompeu-se, ao ser
sua existência posta em dúvida, Atenas perdeu o seu ponto de gravidade e
entrou em irrecorrível declínio político.
Não estamos em Atenas daquele
tempo emblemático, e seria, isso, sim, impiedosa heresia comparar o
julgamento atual do STF ao de Sócrates. Em certo aspecto, no entanto, os
dois episódios se semelham: o do espetáculo. Como tudo em Atenas, o
julgamento de Sócrates foi público, com 501 juízes. Os acusadores e
Sócrates, em sua apologia, foram ouvidos por uma assembléia numerosa, de
acordo com os relatos, mas os que acompanham a Ação 470 vão muito além:
chegam a dezenas de milhões.
A transparência é salutar, mas
não seria essa exposição demorada e ampla, vista pelo outro lado da
razão, contaminada pela vaidade de alguns magistrados e, dela
decorrente, pela influência de jurados estranhos e ilegítimos, mediante
os meios de comunicação?
Todos os condenados já se
encontravam, mesmo sem que se conhecessem devidamente os fatos, julgados
por apresentadores de programas de televisão e políticos, sem falar
nos que se identificavam como “cientistas políticos” e “juristas”,
iluminados pelos holofotes, que supriam de argumentos interessados os
mediadores das emissoras. Assim se desenvolveu um julgamento paralelo,
que antecipava votos e açulava os telespectadores contra os réus. Por
isso mesmo, e de acordo com alguns observadores, também em outros
aspectos foi um julgamento que desprezou as cautelas da lei no que se
refere ao direito de defesa dos acusados.
Se isso realmente ocorreu,
abriu-se precedente perigoso, que poderá servir, no futuro, contra
qualquer um. Ainda que os acusados fossem realmente culpados, a violação
de alguns princípios, entre eles o da robustez das provas, macula o
processo e o julgamento. Como dizia Maquiavel, “quando se violam as leis
por uma boa causa, autoriza-se a sua violação por uma causa qualquer”,
ainda que nociva ao Estado.
O que os observadores de bom
senso temem é que o inconveniente espetáculo, em que se transformou o
julgamento da Ação 470, excite os golpistas de sempre. Ainda que a
sugestão não passe de tolice insana, há os que pretendem aproveitar-se
do julgamento para promover um processo contra o presidente Lula e seu
governo.
Se isso viesse a ocorrer, os
juízes do Supremo teriam que admitir novos processos contra outros
chefes de Estado, pelo menos no exame dos atos de governo dos últimos
vinte anos. Como diz o provérbio rural, o risco que corre o pau, corre o
machado.
A história nos mostra – e 1964 é
alguma coisa recente na vida nacional – que uma das primeiras vítimas
institucionais dos golpes é exatamente a imprensa. O “Correio da Manhã”,
que se excedeu no entusiasmo conspiratório, e publicou o célebre
editorial de primeira página em favor da deposição de Jango pela força,
sob o título de “Basta, e Fora!”, foi o primeiro a se arrepender –
tardiamente – e o primeiro a ser sufocado pela arbitrariedade da
Ditadura.
Os outros vieram depois,
amordaçados pela censura, e obrigados a beber do fel que queriam que
fosse servido aos competidores. Os açodados editores dos jornais e
diretores dos meios eletrônicos, como são as emissoras de rádio e
televisão, devem consultar seus arquivos e meditar essas lições do
passado.
Com todo o respeito pelo STF e a
sua autonomia republicana, não nos parece conveniente a transmissão ao
vivo dos julgamentos. Os juízes devem ser protegidos pelos ritos da
discrição. Seria ideal, também, para a respeitabilidade da Justiça, que
os juízes só recebessem as partes e seus advogados em audiências
regulares, das quais já participam oficialmente os representantes do
Ministério Público.
O ato de julgar, em todas as
suas fases, deve ser visto como alguma coisa sagrada. Essa era a razão
dos ainda mais antigos do que os gregos, que só escolhiam os anciãos
para a difícil missão de ministrar a justiça. Os julgamentos não podem
transformar-se em entretenimento ou em competição oratória.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário