‘Há uma barganha indecente por trás da
farsa dos atestados médicos sobre a saúde de José Genoino
Paulo Moreira Leite, ISTOÉ
Hanna Arendt gostava de lembrar que os nazistas repetiam que em
nossos tempos “o mal exerce uma atração mórbida.”
Cronistas das torturas e execuções públicas
do século XVIII sublinhavam o comportamento feliz da população habituada com
aqueles espetáculos de sangue, dor e violência. Da mesma forma que os fanáticos
de hoje, o pessoal mais agressivo perseguia e agredia aqueles que manifestavam
qualquer tipo de solidariedade com as vítimas do carrasco.
É este tipo de espetáculo que a mesa da Câmara
de Deputados quer promover para cassar o mandato de José Genoino.
Acovardados pelo caráter resoluto dos
protestos de junho, nossos parlamentares estão convencidos de que têm o direito
de tomar qualquer medida, mesmo que destituída de todo valor moral e político,
que ajude a engordar seu Ibope. Esse sentimento cuja base é o medo, e apenas
ele, de serem enxotados pelas urnas em 2014, ganhou corpo ainda maior depois
que Natan Donadon conseguiu conservar seu mandato, embora tenha sido condenado
a 13 anos de prisão. Deveriam ser criticados pelo oportunismo sem limites, pela
falta completa de escrúpulos – mas contam com elogios moderados caso possam
dizer que ouviram o “clamor das ruas”, o “ronco da multidão” e qualquer outro
barulho dessa natureza.
Querendo recuperar um pouquinho de seu
prestígio, eles ensaiam uma manobra de julgam muito astuciosa: entregar a
cabeça de Genoino com forma de compensação.
Veja que grande negócio: trocar a
impunidade de um parlamentar cuja existência eu e você só tomamos conhecimentos
no dia em que preservou o mandato por um cidadão com 30 anos de luta no
Congresso e 50 de luta política, um devoto de suas ideias e convicções, que lhe
renderam um sobrado no Butantã, em
São Paulo, comprado num empréstimo da Caixa Econômica, longas
noites de tortura nos tempos do regime militar e uma malária adquirida no
período em que, de armas na mão, enfrentava uma ditadura de botas, tanques e
fuzis.
Pois é isso, meus amigos. Essa barganha
indecente é que está por trás da farsa dos atestados médicos da semana passada.
Não vou julgar nem pré-julgar nem
pós-julgar a culpa de Donadon.
Mas conheço as denúncias contra
Genoino na ação 470 e reparei que elas foram caindo, dia após dia. A principal,
aquela de que assinou empréstimos fraudulentos para o PT, foi inteiramente
desmentida por um inquérito da Polícia Federal.
Os doutores da Câmara fizeram seu trabalho,
sim. Examinaram Genoino e concluíram que é um caso gravíssimo. Deram-lhe 90
dias de licença, acompanhados de um pedido de novo exame dentro de três meses. Numa
entrevista coletiva, os médicos deixaram claro que a situação de Genoino está
longe de resolvida e que qualquer “ atividade laboral” pode ter sequelas
capazes de produzir novos problemas de saúde – e uma nova cirurgia.
Também escreveram um laudo detalhado sobre
sua condição. Numa atitude que merece elogios, eles se recusaram a colocar a
medicina a serviço de interesses políticos, atitude que tantas tragédias
produziu no passado, de Tancredo Neves a Rubens Paiva, para ficar em dois
exemplos extremos e vergonhosos.
Mas a operação para conduzir o deputado ao
cadafalso foi mais forte. Se em outros tempos os jornais divulgavam notícias
falsas sobre fuga de presos políticos, que logo seriam executados pelo aparato
de repressão, no cadafalso de nosso tempo é possível divulgar laudos que
ninguém estranhou, nem conferiu, nem foi atrás para saber direito. Mas a
mentira, a falsidade, já estava lá.
Assegurou-se que estava tudo bem com
Genoino, que não havia motivo para que fosse atendido o pedido de aposentadoria
por invalidez – que entregou ao Congresso em setembro.
Quando a verdade veio à luz, com a
divulgação do laudo completo, a manobra já fora realizada, a operação para
cortar o pescoço de Genoino já estava em curso e, é claro, os cãezinhos de
Pavlov já davam sinais de saliva na boca.
A luta de Genoino não terminou e, pelo que
se conhece dele, não irá terminar nunca. Mas ficou mais difícil.
O laudo incompleto procura colocar uma
questão de caráter no pedido de Genoino. É uma forma de diminuir sua dignidade,
de transformar seu combate para escrever um capitulo doloroso de sua existência
num lance de astúcia, esperteza, malandragem. Justo eles, os astutos, espertos,
malandros.
Preste atenção: Genoino não está lutando
para manter o mandato. Não quer convencer os colegas de Congresso se é culpado
ou inocente. Este é seu combate na Justiça. No Congresso, ele quer exercer
outro direito, o de se aposentar com dignidade. E até isso é um
problema.
Para cometer uma brutalidade desse tamanho,
é preciso desumanizar Genoino. Ao negar a condição humana, ao rejeitar um
benefício que a lei faculta a uma pessoa em sua condição, fica mais aceitável a
aceitação de uma injustiça e mesmo de um crime. É por isso, e só por isso, que
querem cortar sua cabeça aos olhos da multidão.”
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