Marcos Coimbra, Correio Braziliense
“O que estará acontecendo com o velho
“espírito cordial brasileiro”? Onde andará nossa proverbial capacidade de
encontrar o entendimento, mesmo em meio às diferenças de opinião?
Está certo que o tal “espírito”, nas
palavras de Sérgio Buarque de Holanda — que trouxe o conceito de “homem
cordial” para o centro da discussão sobre a cultura brasileira —, não é algo,
necessariamente, positivo.
Ele não usava a expressão, apenas, como
sinônimo de afável, amável, sincero. Em sua obra mais importante, Raízes do Brasil,
“cordial” tinha o sentido etimológico e descrevia uma cultura regida “pelo
coração” ao invés da razão, em que a subjetividade impede a predominância dos
valores objetivos, e em que a ética privada — da amizade e da compreensão —
submete a ética pública.
A consequência disso era
clara para ele: “No Brasil, somente excepcionalmente tivemos um sistema
administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses
objetivos (…). Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história,
o predomínio constante das vontades particulares, que encontram seu ambiente
próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”.
Em que pesem esses efeitos danosos, foi
pela presença da “cordialidade” que construímos uma cultura política menos
marcada pela radicalização e pelo ódio que a de nossos vizinhos. Na América do
Sul, a regra é a existência de clivagens, ideológicas e partidárias, muito mais
profundas e duradouras do que as que temos por aqui.
Da redemocratização para cá, todos os
momentos políticos mais importantes foram marcados por grandes convergências: a
eleição de Tancredo, a institucionalização democrática com Sarney, a eleição
direta para presidente, o impeachment de Collor, o plano Real, a vitória de
Lula. Sempre houve oposição (até porque a cordialidade não requer a concórdia),
mas não intransigente e, às vezes, pouco mais que simbólica.
Dentre muitos, um exemplo: Fernando
Henrique abraçando Lula no parlatório do Palácio do Planalto, depois de lhe
passar a faixa presidencial, os dois emocionados, sob os olhos do país.
Este é o primeiro Natal a que chegamos com
um ambiente político tão carregado. A data ajuda a deixar isso visível — pois
costuma ser um momento de desanuviamento de espíritos —, mas, na verdade, quase
todo 2011 foi assim (salvo os primeiros meses, quando o governo Dilma viveu uma
fase rósea).
As três frentes da oposição brasileira
terminam o ano em pé de guerra. No plano institucional, os partidos e os
políticos oposicionistas exacerbam o discurso. Até lideranças tradicionalmente
avessas a extremismos fazem coro, ameaçadas de perder a legitimidade.
Na imprensa de oposição — que assumiu,
explicitamente, a missão de “ocupar a posição oposicionista deste país, já que
a oposição (partidária) está profundamente fragilizada”, conforme disse, ano
passado, a presidente da Associação Nacional dos Jornais —, o tom só piorou ao
longo de 2011.
Nos últimos meses, práticas “jornalísticas”
antes inaceitáveis (invasão de domicílio e espionagem, por exemplo), entraram
para o arsenal da reportagem de alguns veículos. Destinaram espaço nada modesto
a estimular protestos de “indignados” (com resultados inexpressivos).
Quase
diariamente, exigem contundência dos políticos da oposição.
Na oposição social, espontânea e
desorganizada — e que se manifesta particularmente na internet e nas redes
sociais —, são cada vez mais frequentes as manifestações de uma agressividade
incomum em nossos costumes políticos. Em parte, ela ecoa o que consome dos
valentões dessa imprensa, em parte, apenas expressa seus pontos de vista com
truculência.
Uma das razões que explicam esse triplo
recrudescimento é a campanha que Serra fez em 2010. Ele semeou a beligerância
que marca este dezembro.
A vitória de Dilma é outra causa. Perder
para Lula era aceitável, ter de se contentar com apenas lhe ser oposição, uma
coisa até normal. Mas estar condenado a ocupar um posto secundário frente a
ela, quase uma afronta.
A popularidade do governo é a terceira. Sua
aprovação popular é inconcebível por quem se acha tão melhor.
O governismo (qualquer governismo) não é,
por princípio, radical. A não ser quando se sente acuado. E talvez não
estejamos muito longe desse ponto, pelo andar da carruagem.
Por enquanto, a radicalização é um fenômeno
localizado, que não atinge a vasta maioria do país.
Ela ocorre, quase que exclusivamente, no
âmbito do sistema político e na pequena parcela da sociedade que acompanha seu
dia a dia. Ainda bem.
No Brasil das pessoas comuns, o Natal está
chegando como sempre, favorecendo os sentimentos de cooperação e amizade. Aumentando
algo que não deveríamos deixar que desaparecesse: a cordialidade.”
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