Wálter Maierovitch
Foi muita coisa para tão pouco tempo. Primeiro, o procurador-geral da
República, Roberto Gurgel, e a sua esposa, a subprocuradora Cláudia
Sampaio, livraram-se de comparecer, para tentar explicar o inexplicável,
à CPI do Cachoeira. Depois, os ex-ministros Nelson Jobim e José Carlos
Dias, este da Comissão da Verdade, ignoraram a vinculante decisão
condenatória do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos e o
consagrado pela Corte Europeia de Direitos Humanos e pelo Tribunal
Penal Internacional. Essas cortes de jurisdição internacional não
admitem a autoanistia voltada a conferir impunidade aos agentes do
Estado envolvidos em crimes de lesa-humanidade.
Os ex-ministros sustentam a tese, com apoio no canhestro voto condutor
dado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então ministro Eros Grau, da
bilateralidade da anistia de 1979. Assim entendem dever a Comissão da
Verdade promover “apurações bilaterais”: investigar atos de terrorismo
de Estado e, também, as condutas dos resistentes à ditadura e que
optaram pela luta armada.
A nossa Constituição obriga o cumprimento das decisões da Corte
Interamericana de Direitos Humanos e ela não admite a autoanistia, caso
típico da lei brasileira de 1979, concebida em plena ditadura e por um
Legislativo biônico.
Jobim, que em livro laudatório confessou ter inserido na Constituição
dispositivos subtraídos da apreciação dos seus pares constituintes,
fala, como partícipe, de um acordo não escrito sobre investigações “dos
dois lados”. O tal acordo foi negado pelo ex-secretário nacional de
Direitos Humanos Paulo Vannuchi.
Na Comissão da Verdade, Rosa Maria Cardoso, Paulo
Sérgio Pinheiro e Maria Rita Kehl não aceitam a tese de Jobim-Dias. Os
demais integrantes ainda não se manifestaram, mas sabe-se que o ministro
Gilson Dipp, muito ligado a Nelson Jobim, já defendeu, como
representante do governo do Brasil, a tese da anistia ampla e bilateral
no âmbito da Corte Interamericana.
Por outro lado, a CPI apequenou-se diante da negativa do procurador
Gurgel de comparecer para esclarecimentos. Gurgel recebeu, em setembro
de 2009, os autos do inquérito policial iniciado com a chamada Operação
Vegas e fornecedor de notícia criminal da participação do senador
Demóstenes Torres.
Segundo o Código de Processo Penal, o procurador tem um prazo de 15 dias
para propor a ação penal, solicitar novas diligências policiais ou
pedir o arquivamento. No gabinete de Gurgel, o inquérito ficou
engavetado até abril de 2012, quando a mídia começou a divulgar
comprometedoras conversas telefônicas entre Cachoeira e Torres.
Na primeira explicação, Gurgel partiu para o diversionismo e falou em
pressão por parte de mensaleiros a tremer de medo. O certo é que a sua
atuação no inquérito Vegas foi nenhuma, para felicidade de Torres. O
procurador só resolveu atuar diante do vazado na mídia e extraído do
inquérito começado com a Operação Monte Carlo, que apurou a jogatina
eletrônica bancada por Cachoeira. Esse inquérito deveu-se à requisição
de três promotores da comarca de Valparaíso, no interior de Goiás, que
nada sabiam do inquérito congelado no gabinete de Gurgel.
Gurgel procurou os refletores para disparar que Torres
agia como sócio oculto da Delta e de modo a afastar suspeitas de acordo
com o senador. Este, para forçar a manutenção do inquérito Vegas no
freezer, opinava contra a recondução de Gurgel ao cargo de
procurador-geral. De repente, Torres mudou a postura e votou pela
aprovação da recondução. Depois disso, o inquérito permaneceu no
congelador da PGR.
Com o prestígio do procurador-geral em queda livre, entrou na
trapalhada, e no papel de biombo do marido, Cláudia Sampaio. Ela
mencionou um pedido policial não escrito para evitar o arquivamento do
inquérito Vegas. Tudo como se fosse possível um delegado pedir, “na
moita”, o cometimento de uma ilegalidade a uma subprocuradora.
O delegado a desmentiu e contou com nota esclarecedora da direção da
Polícia Federal. Do episódio, e noves fora, sobrou a confissão de
ilegalidade. Mais ainda: a subprocuradora tropeçou na tosca
justificativa sobre o salutar não arquivamento do inquérito. Uma das
súmulas do STF permite, no caso de prova nova (inquérito Monte Carlo), o
desarquivamento de inquérito.
Não bastasse o quadro de Procuradoria-Geral de república bananeira,
Gurgel ignora que democracia significa um regime po–lítico pelo qual o
povo (demos) tem o comando, o poder (kratos). E esse
comando é exercitado pelos seus representantes, eleitos li-vremente.
Ora, os representantes do povo, no Parlamento e reunidos em CPI, detêm
legitimação para convocar Gurgel e exigir de-le explicações sobre o
engavetamento do inquérito. Numa verdadeira democracia é assim, embora
Gurgel não saiba.
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