O Conversa Afiada reproduz texto de Emiliano José:
Veja na CPI, por que não?
Emiliano José*
O Estado democrático não confere
privilégios a ninguém. Não deveria. Digo isso a propósito dessa
discussão sobre a eventual convocação do jornalista Policarpo Júnior à
CPI do Cachoeira – e a depender das averiguações, do próprio Roberto
Civita, o todo-poderoso da Editora Abril, a mão que balança o berço da
revista Veja. Do meu ponto de vista, se houver, como há, claros indícios
de participação da publicação nos propósitos criminosos de Carlinhos
Cachoeira, não há atalhos possíveis para evitar a convocação de um
deles, ou de ambos. O jornalista Luís Nassif tem insistido que se
esqueça Policarpo Júnior porque o mandante de tudo é Roberto Civita.
É evidente que a discussão sobre o
relacionamento dos jornalistas com a fonte não é simples. Lembro-me de
um livro que li há muito tempo, de Yves Mamou, em que ele desenvolve a
tese de que, longe de os jornalistas manipularem as fontes, são estas
que os manipulam. É uma formulação que, em minha opinião, está muito
próxima da verdade – ele trata no livro tanto do mundo dos negócios
quanto do território da política.
Não há e não pode haver ingenuidade
nessa relação, que é sempre um intercâmbio, uma troca. Há, sempre, um
toma lá, dá cá – perigoso, tenso, delicado, sensível. E, nesse jogo, o
jornalista pode esforçar-se para defender os interesses da sociedade, e
não são todos que conseguem esse feito. Há aqueles que se submetem à
fonte, aos interesses exclusivos da fonte, e aí, é claro, a notícia
verdadeira, ou mais próxima da verdade, é sacrificada. E isso, como
sabemos, não é raro.
Essa relação, nos dias de hoje, não
pode ser pensada em termos individuais, como se o problema se
circunscrevesse apenas à relação entre a fonte e o jornalista. Hoje, os
jornalistas saem às ruas com a pauta pronta, com a ideia de provar uma
hipótese elaborada na redação. São os editores que guiam os repórteres
na sua relação com as fontes, mesmo que cada um tenha suas
singularidades. Alguém pode imaginar um repórter de Veja cismando de
pesquisar, aprofundar as denúncias contidas no livro do Amauri Júnior
sobre as privatarias tucanas? Ora, ora, claro que não. A relação é
mediada desde cima – a orientação editorial é que comanda a pauta e a
relação fonte-jornalista, e o faz com mão de ferro, que ninguém se
engane.
Dito isso, volto a nossa revista.
Sabidamente, Veja se dedica, de modo militante, e sem nenhum escrúpulo, a
combater o projeto político que o PT comanda no Brasil desde 2003. É
uma revista filosófica e politicamente de direita – e nisso não haveria,
em tese, nenhum mal. Bastava que fizesse isso observando algumas lições
de manuais do jornalismo, que não chutasse tanto, não mentisse de modo
tão desavergonhado, não fosse tão irresponsável e, agora podemos dizer,
tão murdochiana. Sua visão tão sectariamente partidária – no amplo
sentido da palavra, de ter um lado do qual não abre mão – faz com que
mande às favas quaisquer escrúpulos e use quaisquer métodos, inclusive
criminosos. O que fez Rupert Murdoch senão valer-se da arapongagem? E a
Inglaterra soube reagir aos crimes daquele cidadão e suas empresas.
O que fez a revista nessa relação
com sua fonte, Carlinhos Cachoeira? Poderia dizer que nos últimos anos
tornou-se refém dela. Isso, no entanto, seria pouco. Veja terceirizou a
pauta – é fácil perceber, pelo pouco que ainda sabemos, as muitas pautas
que a fonte criminosa encomendou à revista, e foi prontamente atendida.
Ou como a fonte atendeu a pedidos da revista para usar seus arapongas e
construir matérias, verdadeiras ou falsas, muito mais falsas que
verdadeiras. Pelas escutas divulgadas, a fonte comemorou tantas vezes o
que Veja fazia, tudo previamente combinado. Muitas vezes comemorou com o
senador Demóstenes Torres.
E é claro que Veja sabia quem era
Carlinhos Cachoeira, a natureza de seus negócios, quem eram seus
arapongas criminosos, quem era o senador Demóstenes Torres. Que
justificativa há para tal, vá lá, conivência? Que justificativa há para
tão íntima convivência? Que justificativa há para acobertar tantos
crimes, inclusive contra o erário, que Veja, nos casos que seleciona, no
mais das vezes sem critério, diz defender?
A CPI, instrumento que Veja sempre
defendeu, é um instrumento do Estado de Direito. É um espaço
democrático. Por que o medo da CPI? É só a revista se apresentar, se
convocada, e provar que os mais de duzentos telefonemas trocados entre
seu jornalista e Carlinhos Cachoeira atenderam aos critérios do bom
jornalismo, aos interesses da sociedade. Ou não. E, se não, enfrentar as
consequências. Simples assim.
* Artigo publicado orginalmente no
site da revista Teoria e Debate. Emiliano José é professor-doutor em
Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia,
jornalista, escritor e suplente de deputado federal(PT/BA).
Nenhum comentário:
Postar um comentário