Nós
A liberdade de expressão começa no reconhecimento de que jornalista é cidadão igual a qualquer outro
Vamos desfrutar de atenções especiais de proteção. "Vamos", leitor, não inclui você. Lamento, mas, se não é jornalista,
quando vivo continuará sujeito aos riscos dos cidadãos comuns. Para
depois, trate já de contentar-se com investigações e processos à
brasileira, caso lhe ocorra um assalto fatal ou uma bala perdida
encontre sua vida. Conosco, jornalistas, será diferente.
A ministra da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Maria do Rosário,
decidiu criar um "observatório de acompanhamento das investigações de
atentados a jornalistas". E, ainda, "abrir um canal de comunicação
direta" para denúncias, ao governo, de ameaças a jornalistas, então
chamados de "liberdade de expressão".
A ministra comunicou sua decisão aos representantes de entidades da
classe que cumpriram o dever estatutário de procurá-la, em razão dos
quatro assassinatos de jornalistas neste ano. Mas a proposta que lhe
levaram foi a de federalização dos crimes, de morte ou não, contra
jornalistas.
Por seu lado, o novo presidente do Supremo Tribunal Federal, Carlos Ayres Britto,
ao encerrar um seminário sobre liberdade de expressão, falou do seu
propósito de realizar "programas e até campanhas", por meio do Conselho Nacional de Justiça,
"de conscientização" pela "plenitude da liberdade de imprensa. Quem
sabe o nível de intolerância diminua". Os assassinatos, disse, foram
"atentados contra a vida e a liberdade de expressão".
À parte as generosas intenções, os jornalistas não precisam de
tratamento especial. Todo e qualquer privilégio a jornalistas é, ele
sim, contrário à liberdade de expressão. E cerceador da atividade
jornalística, mesmo que a legislação assegure a liberdade plena de
expressão.
Um privilégio, no caso, é um constrangimento à liberdade do jornalismo,
como uma forma de retribuição negada, possível em inúmeras situações.
Até a década de 60, os jornalistas gozaram do privilégio, por exemplo, de não pagar Imposto de Renda e de só pagar 50% das passagens aéreas.
Uma das consequências, para citar uma de tantas, era o grotesco
princípio de gratidão que proibia publicar-se o nome da companhia de
avião acidentado.
Quando, em situação funcional para tanto, deixei de lado o princípio,
nem os céus acudiram. Estive na minoria de oposição aos dois privilégios
(ainda há muitos, menores embora) e, em certa medida, sobrevivo ao seu
fim: posso assegurar que só fizeram mal e sua extinção só fez bem. (É
imprudência dizê-lo sobre o Imposto de Renda, eu sei, queira desculpar).
O crime contra o jornalista pode ser, sim, crime contra a liberdade de
expressão. Na essência, porém, identifica-se com o crime contra a
liberdade de ir e vir, assegurado a todo cidadão e tolhido aos milhares
no país todo.
Não há razão alguma, na democracia, para distinguir o tratamento
preventivo ou posterior às vítimas de um ou de outro. Tanto mais se em
razão apenas da condição profissional, como fazem os policiais,
liberados na fúria e na atitude, quando um dos seus é morto.
Ninguém é obrigado a ser jornalista. Ninguém que exerça, no jornalismo,
atividade com algum grau de risco funcional o ignora. Quem não o tolere,
encontra muitos outros gêneros de jornalismo a fazer, com a mesma
importância.
A fatalidade, às vezes a imprudência, muitas vezes a presunção e a
autossuficiência podem sobrepor-se à consciência do risco, claro. Mas,
quanto a isso nada há a fazer, muito menos observatórios e campanhas que
mais úteis seriam em outros problemas.
A plenitude da liberdade de expressão começa no reconhecimento de que o
jornalista é um cidadão absolutamente igual a qualquer outro.
Diferencia-se na função como todas as funções se diferenciam. Ou seja,
as diferenças são das funções, não dos cidadãos.
Desde o primeiro dia do governo Sarney, com intervalo apenas no governo
Collor, o Brasil vive na plenitude da liberdade de expressão. Collor e
Romeu Tuma moveram seus policiais e agentes do fisco para restringir a
liberdade de expressão -a invasão da Folha foi notória e é histórica.
Antes e depois, porém, as ofensas à liberdade de expressão são muito
esparsas e seus efeitos negativos não se projetam além de si mesmas.
As mortes dos quatro jornalistas são deploráveis. Como todas as mortes,
digamos, injustas e despropositadas. São horrivelmente iguais.
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Do Blog O Esquerdopata.
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