À comissão de juristas do Senado, instalada em outubro do ano passado
para elaborar a minuta do projeto de lei que reformará o atual Código
Penal, de 1940, está confiada, em grande medida, a tarefa de modernizar a
legislação penal, aproximando-a da realidade criminal do país.
Formada por especialistas, sob a presidência do ministro do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) Gilson Dipp (que, à frente da Corregedoria
Nacional de Justiça, segundo muitos, iniciou o trabalho a que a ministra
Eliana Calmon vem dando prosseguimento) a comissão contava
inicialmente, também, com a participação da ministra Maria Teresa de
Assis Moura. Colega de Dipp, ela se notabilizou, recentemente, pela
decisão que tomou no caso em que um homem era acusado de estupro por ter
mantido relações sexuais com três meninas de 12 anos de idade,
envolvidas com a prostituição. Talvez a disparidade de imagens, as que
essas duas figuras evocam, seja suficientemente esclarecedora do nível
de complexidade que a tarefa envolve e do nível de incerteza quanto aos
seus resultados.
No decorrer das 13 reuniões que a comissão já realizou, foram
estabelecidas diretrizes gerais e debatidas questões mais ou menos
polêmicas acerca dos “crimes contra a vida” e “crimes contra a dignidade
sexual” – que envolvem disputas em torno da descriminalização do aborto
e da eutanásia, por exemplo. No último dia 23, no entanto, iniciou-se
um novo capítulo da reforma do Código Penal. A aprovação, pela comissão,
da proposta que criminaliza o enriquecimento ilícito de servidor
público reacendeu o debate acerca do controle da corrupção no Brasil,
chegando o relator da reforma, o promotor Luiz Carlos dos Santos
Gonçalves, do Ministério Público de São Paulo, a classificar como ‘um
momento histórico na luta contra a corrupção’ o daquela tarde de
segunda-feira.
Foi aprovada, ainda, a proposta que põe fim à distinção entre a
corrupção passiva e a ativa. Atualmente, a corrupção é um crime que se
desdobra em três possibilidades: corrupção passiva, corrupção ativa, e
corrupção ativa e passiva. A corrupção passiva (CP, art. 317) ocorre
quando o agente público solicita vantagem (em geral, pecuniária) para
fazer ou deixar de fazer algo, em razão do cargo que ocupa. Não importa
que a outra parte dê o que é pedido pelo corrupto: o corrupto comete o
crime a partir do momento que pede a coisa ou vantagem. Já a corrupção
ativa (CP, art. 333) ocorre quando alguém oferece alguma coisa
(normalmente, mas não necessariamente, dinheiro ou um bem) para que um
agente público faça ou deixe de fazer algo em razão de sua função. Nesse
caso, o criminoso é quem oferece a vantagem e, igualmente, não importa
que o agente aceite, pois o crime se consuma no momento do oferecimento.
A atual legislação brasileira, portanto, não exige bilateralidade para
que fique comprovado nem um nem outro crime: não é necessário que haja
corrupção ativa para que se configure a passiva, e o contrário também é
verdadeiro, embora nada impeça que em uma determinada ação fiquem
configurados ambos crimes.
Com o fim da distinção, o que se pretende é facilitar a comprovação da
corrupção ativa, já que, em tese, a prova válida para a corrupção
passiva poderá vir a servir também para a ativa. A medida procura,
portanto, tornar mais fácil o entendimento e a aplicação da lei. Sabemos
que o sistema jurídico brasileiro dificulta demasiadamente a punição da
corrupção, devido a um conjunto de instrumentos jurídicos: as quatro
instâncias às quais o acusado pode recorrer, o conceito de transitado em
julgado e o foro especial para os políticos. Mas, muito mais difícil é
punição do corruptor ativo. Sabemos que em crimes de corrupção
fortemente comprovados como os que levaram ao impeachment do
ex-presidente Collor ou a CPI do Orçamento, não houve a punição de
corruptores. Isso se deve, em parte, à conformação diferenciada do crime
em dois tipos penais. Diga-se de passagem que, em vários países do
mundo, utiliza-se um tipo penal apenas. Assim, a tipificação de apenas
um crime, uma vez que não existem corruptos sem corruptores, facilitaria
a punição dos corruptores.
Propôs-se, ainda, que o novo Código Penal atinja pessoas jurídicas nos
casos de crimes de corrupção, mas o assunto ainda será discutido pela
comissão. Multas sobre o faturamento da empresa ou sobre o valor da
propina poderão figurar entre as punições de empresas envolvidas em
corrupção, caso a proposta seja aceita. Além disso, a empresa poderá
ficar proibida de participar de licitações públicas. Essas medidas são,
sem dúvida, a concretização do “não há corrupto sem corruptor”.
O reconhecimento da ineficiência não apenas do Código Penal, mas, em
especial, da persecução criminal no Brasil, designadamente no campo dos
crimes contra a administração pública, que subjaz as alterações
aprovadas pela comissão, coloca os órgãos que compõem o sistema de
Justiça brasileiro em situação de pensar a sua própria centralidade na
manutenção e ampliação da democracia, no Brasil. De fato, a crise da
representação política (crise do sistema partidário e da participação
política), favorece um processo de deslocamento da legitimidade
democrática em direção aos tribunais e, em uma de suas dimensões,
confronta-os na sua função de controle social. A visibilidade dos
tribunais desloca-se de algum modo para o domínio penal, onde a análise
de seu desempenho é mais complexa porque depende, especialmente, do
Ministério Público e das polícias de investigação. Segundo pesquisa da
Associação de Magistrados Brasileiros (AMB), entre 1988 e 2007,
iniciaram, no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), 130 ações
penais, das quais 44 (33,85%) diziam respeito a crimes contra a
administração pública. Em junho de 2007, ainda tramitavam 52 (40%)
delas; 13 (25%) das quais há mais de três anos. Dentre as ações penais
julgadas, 35,38% foram remetidas à instância inferior – provavelmente em
decorrência do término do mandato do réu (o que lhe concedia foro
privilegiado) -; deu-se a prescrição e/ou extinguiu-se a punibilidade em
10% dos casos; absolveu-se em 5% dos casos. Houve, em toda a história
do STF pós-1988, apenas duas condenações, uma das quais com o crime já
prescrito.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça (STJ), 28,16% das ações penais
originárias iniciadas entre 1988 e 2007 tratavam de crimes contra a
administração pública (28,16%) e os crimes contra o sistema financeiro
nacional representavam 2,9% do total. Tramitavam, ainda, em 2007, 81
(16,77%) desses processos: 25 (5,18%) deles havia mais de três anos e 22
(4,55%) outros havia mais de seis anos. Aqui também a maioria das ações
(26,9%) foi remetida para as instâncias inferiores; outras 10 ações
(2,09%) foram remetidas para o STF; houve rejeição da denúncia por
atipicidade em 15,32% dos casos; extinção da punibilidade por prescrição
ou decadência em 14,7% dos processos e absolvição em 2,28%. A
condenação atingiu apenas 1,04% das ações.
Assim, podemos dizer que a mudança no Código Penal é importante, mas ela
precisa ser acompanhada de outras medidas. O foro especial no STF, tal
como ele está atualmente normatizado, incentiva a impunidade. Os
processos correm de um lado para outro dependendo do cargo exercido pela
pessoa, que frequentemente deixa de ser deputado ou até mesmo ministro
para atrasar o seu processo. Ainda que seja difícil extinguir o foro
especial no Brasil devido à nossa tradição legal, se poderia pensar em
algumas maneiras de reorganizá-lo. Uma delas seria, talvez, transferi-lo
para o STJ, que tem muito mais capacidade de dar celeridade a estes
processos, em especial se eles não forem transferidos para outras
instâncias. Mais uma vez, o combate à grande criminalidade política
suscita a questão da preparação técnica dos tribunais e da vontade
política.
Vale a pena observar que a diminuição da impunidade será formatada pelo
sistema político tendo em vista a natureza das clivagens no interior da
própria classe política, a existência ou não de movimentos sociais e
organizações civis com agendas de pressão sobre o poder político e
judicial e a existência ou não de uma opinião pública esclarecida por
uma comunicação social livre, competente e responsável. Está aberta uma
possibilidade de diminuir a impunidade no Brasil.
Leonardo Avritzer e Marjorie MaronaNo CartaCapital
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