O Estado democrático não confere privilégios a ninguém. Não deveria.
Digo isso a propósito dessa discussão sobre a eventual convocação do
jornalista Policarpo Júnior à CPI do Cachoeira – e a depender das
averiguações, do próprio Roberto Civita, o todo-poderoso da Editora
Abril, a mão que balança o berço da revista Veja. Do meu ponto de vista,
se houver, como há, claros indícios de participação da publicação nos
propósitos criminosos de Carlinhos Cachoeira, não há atalhos possíveis
para evitar a convocação de um deles, ou de ambos. O jornalista Luís
Nassif tem insistido que se esqueça Policarpo Júnior porque o mandante
de tudo é Roberto Civita.
É evidente que a discussão sobre o relacionamento dos jornalistas com a
fonte não é simples. Lembro-me de um livro que li há muito tempo, de
Yves Mamou, em que ele desenvolve a tese de que, longe de os jornalistas
manipularem as fontes, são estas que os manipulam. É uma formulação
que, em minha opinião, está muito próxima da verdade – ele trata no
livro tanto do mundo dos negócios quanto do território da política.
Não há e não pode haver ingenuidade nessa relação, que é sempre um
intercâmbio, uma troca. Há, sempre, um toma lá, dá cá – perigoso, tenso,
delicado, sensível. E, nesse jogo, o jornalista pode esforçar-se para
defender os interesses da sociedade, e não são todos que conseguem esse
feito. Há aqueles que se submetem à fonte, aos interesses exclusivos da
fonte, e aí, é claro, a notícia verdadeira, ou mais próxima da verdade, é
sacrificada. E isso, como sabemos, não é raro.
Essa relação, nos dias de hoje, não pode ser pensada em termos
individuais, como se o problema se circunscrevesse apenas à relação
entre a fonte e o jornalista. Hoje, os jornalistas saem às ruas com a
pauta pronta, com a ideia de provar uma hipótese elaborada na redação.
São os editores que guiam os repórteres na sua relação com as fontes,
mesmo que cada um tenha suas singularidades. Alguém pode imaginar um
repórter de Veja cismando de pesquisar, aprofundar as denúncias contidas
no livro do Amauri Júnior sobre as privatarias tucanas? Ora, ora, claro
que não. A relação é mediada desde cima – a orientação editorial é que
comanda a pauta e a relação fonte-jornalista, e o faz com mão de ferro,
que ninguém se engane.
Dito isso, volto a nossa revista. Sabidamente, Veja se dedica, de modo
militante, e sem nenhum escrúpulo, a combater o projeto político que o
PT comanda no Brasil desde 2003. É uma revista filosófica e
politicamente de direita – e nisso não haveria, em tese, nenhum mal.
Bastava que fizesse isso observando algumas lições de manuais do
jornalismo, que não chutasse tanto, não mentisse de modo tão
desavergonhado, não fosse tão irresponsável e, agora podemos dizer, tão
murdochiana. Sua visão tão sectariamente partidária – no amplo sentido
da palavra, de ter um lado do qual não abre mão – faz com que mande às
favas quaisquer escrúpulos e use quaisquer métodos, inclusive
criminosos. O que fez Rupert Murdoch senão valer-se da arapongagem? E a
Inglaterra soube reagir aos crimes daquele cidadão e suas empresas.
O que fez a revista nessa relação com sua fonte, Carlinhos Cachoeira?
Poderia dizer que nos últimos anos tornou-se refém dela. Isso, no
entanto, seria pouco. Veja terceirizou a pauta – é fácil perceber, pelo
pouco que ainda sabemos, as muitas pautas que a fonte criminosa
encomendou à revista, e foi prontamente atendida. Ou como a fonte
atendeu a pedidos da revista para usar seus arapongas e construir
matérias, verdadeiras ou falsas, muito mais falsas que verdadeiras.
Pelas escutas divulgadas, a fonte comemorou tantas vezes o que Veja
fazia, tudo previamente combinado. Muitas vezes comemorou com o senador
Demóstenes Torres.
E é claro que Veja sabia quem era Carlinhos Cachoeira, a natureza de
seus negócios, quem eram seus arapongas criminosos, quem era o senador
Demóstenes Torres. Que justificativa há para tal, vá lá, conivência? Que
justificativa há para tão íntima convivência? Que justificativa há para
acobertar tantos crimes, inclusive contra o erário, que Veja, nos casos
que seleciona, no mais das vezes sem critério, diz defender?
A CPI, instrumento que Veja sempre defendeu, é um instrumento do Estado
de Direito. É um espaço democrático. Por que o medo da CPI? É só a
revista se apresentar, se convocada, e provar que os mais de duzentos
telefonemas trocados entre seu jornalista e Carlinhos Cachoeira
atenderam aos critérios do bom jornalismo, aos interesses da sociedade.
Ou não. E, se não, enfrentar as consequências. Simples assim.
Emiliano José,
professor-doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela
Universidade Federal da Bahia, jornalista, escritor e suplente de
deputado federal(PT/BA).
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