Enquanto a democracia brasileira dá mais uma mostra de saúde, com as
belas eleições do domingo 7, uma tempestade se arma contra ela. É bom
estarmos prevenidos, pois seus efeitos podem ser graves.
Faz tempo que uma doença atinge nossas instituições. Os especialistas a chamam de judicialização.
A palavra não existia até há pouco. Mas teve de ser criada, pois um fenômeno novo e relevante surgiu e precisava ser batizado.
Designa a hipertrofia do judiciário e sua invasão das atribuições dos
demais Poderes. A judicialização acontece quando esse poder submete, ou
quer submeter, o Legislativo e o Executivo.
No mundo de hoje, é mais comum que o Executivo seja a ameaça. As queixas
são generalizadas contra a perda de funções do Legislativo, subtraídas
por seu crescimento desmesurado. Administrações cada vez mais complexas e
burocratizadas, que atuam como se estivessem em campo oposto aos
parlamentos, são regra e não exceção.
O que estamos presenciando é outro fenômeno. A “judicialização” nada tem
a ver com as tensões tradicionais e necessárias que existem entre os
Poderes.
Na democracia, a fonte da legitimidade do Executivo e do Legislativo é a
mesma: o voto popular. O primeiro reflete a maioria, o segundo, a
diversidade, pois nele todas as minorias relevantes podem se expressar.
O Judiciário é diferente, por ser o único poder cujos integrantes são
profissionais de carreira e não representam ninguém. E é especialmente
grave o risco de que invada a esfera dos outros. De que queira
subordiná-los ao que seus titulares eventuais, na ausência de um mandato
popular autêntico, supõem ser o interesse coletivo.
O julgamento do “mensalão” tem sido o mais agudo exemplo da judicialização que acomete nossas instituições.
Já tínhamos tido outros, um de consequências nefastas nas questões de
fundo suscitadas pelo episódio do mensalão. A proliferação artificial de
partidos, encorajada por uma legislação que há muito precisa ser
revista, foi limitada por lei emanada do Congresso Nacional, que a
Presidência da República sancionou. Mas o Supremo Tribunal Federal (STF)
a restaurou.
Em nome de um “democratismo”, manteve normas que complicam o voto para o
eleitor e dificultam a formação de maiorias parlamentares menos
voláteis, problema que todos os presidentes enfrentaram e enfrentam.
Isso é, porém, café pequeno perante o que estamos vendo desde o início do julgamento.
Sem que tenha recebido da sociedade mandato legítimo, o STF resolveu
fazer, à sua maneira, o que entende ser o “saneamento” da política
brasileira. Ao julgar o mensalão, pretende fixar o que o sistema
político pode fazer e como.
Imbuído da missão autoatribuída, faz o que quer com as leis. Umas
ignora, em outras inova. Alarga-lhes ou encurta o alcance conforme a
situação. Parece achar que os fins a que se propõe são tão nobres que
qualquer meio é válido.
O problema desse projeto é o de todos que não obedecem ao princípio da representação. É o que esses ministros querem.
São 11 cidadãos (agora dez) com certeza capazes em sua área de atuação.
Mas isso não os qualifica a desempenhar o papel que assumem.
Pelo que revelam em seus votos e entrevistas, conhecem mal a matéria.
Falta-lhes informação histórica e têm pouca familiaridade com ela.
Pensam a política com as noções de senso comum, com preconceitos e
generalizações indevidas.
Acreditam que a democracia deve ser tutelada, pois o povo precisaria da “proteção”de uma elite de “homens de bem”.
Acham-se a expressão mais alta da moralidade, que vão “limpar” a política e dela expulsar os “sujos”. Estão errados.
Mas não é isso o que mais preocupa. Ainda que fossem dez ministros com
notável conhecimento, ótimas idéias e nenhuma pretensão, que delegação
teriam?
Na democracia, quem quer falar pelo povo tem um caminho: apresentar-se, defender o que pensa e obter um mandato.
Fora disso, não há regras. Generais já se acharam melhores que os
políticos, mais “puros”. Como os juízes de hoje, os generais estavam
preparados e eram patriotas. Desconfiavam dos políticos. Viam-se como
expressão da sociedade. Liam na grande mídia que “precisavam responder
aos anseios do País” e moralizar a política. Tinham um deles para pôr no
poder.
O final daquele filme é conhecido. E o de agora?
Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox PopuliNo Esquerdopata
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