Quando
o ministro Ricardo Lewandowski teve coragem de dissentir em alguns
votos: relativizar, pedir provas, impugnar uma doutrina de ocasião, foi
massacrado por comentários sardônicos, ataques a sua integridade e a
sua sabedoria jurídica pela mídia vigilante. Os seus votos colocam uma
questão de fundo para o futuro democrático do país. O Brasil deve a
Lewandowsky este alerta, pela sua conduta ética em se indispor contra
condenações já anunciadas. Este ministro é o Carl Schmitt ao contrário:
quer que a regra seja sempre superior à exceção.
Um artigo que publiquei aqui
sobre a questão do “estado de exceção permanente” mereceu algumas
considerações que reputo importantes para a cultura política e jurídica
do Estado de Democrático de Direito e também para o meu próprio
proveito, como pessoa que preza o debate de ideias e milita - por vezes
assumindo cargos públicos- no campo do ideário socialista.
Não desconheço as grandes contribuições de Agamben e sobretudo do
maiúsculo Walter Benjamin sobre o assunto. Nem o juízo - sustentado por
brilhantes analistas de esquerda - de que é possível, na
profundidade do conceito de “exceção permanente” de Schmitt, matizar
que o sistema de produção e reprodução das condições de existência no
capitalismo ampara-se, sempre, na “excepcionalidade”. Tomada esta,
enfim, como violação permanente das suas próprias normas de organização
jurídica e política, de forma alheia às promessas das constituições
democráticas, com seus “direitos fundamentais”.
Reconheço, também, que este plano de análise é adequado para
compreender a gênese do Direito no capitalismo moderno, do seu processo
de acumulação, das suas guerras e da sua perversidade. Esta gênese
está recheada, no entanto, por conquistas civilizatórias importantes,
que não devem ser ignoradas, sob pena de se cair no equívoco grave que o
socialismo - ou o que suceder o capitalismo atual, para melhor -
recomeça a História e reinventa o ser humano a partir do “zero”.
Entendo como conquista civilizatória tudo o que, nas instituições do
estado e nas relações sociais, obriga e conscientiza os homens a terem o
outro como uma extensão de si mesmos. Ou seja, promovem e orientam a
“descoisificação” e instrumentalização do outro e, portanto, ampliam os
horizontes das comunidades humanas, para se auto-reconhecerem como
integrantes de um todo uno e diverso.
Reputo, então, que “dentro” deste processo - que nem sempre é
“evolutivo”, pois às vezes ocorre por “saltos”, guerras revoluções -
estão conquistas que têm um estatuto de universalidade para o
humanismo, do qual a ideia do socialismo moderno é fruto ainda não
acabado. Aponto dois “fundamentos” que, se não estiverem presentes
naquela implementação de uma nova sociedade, as promessas de igualdade e
solidariedade, na nova ordem, ficarão comprometidas.
Para que a nova ordem prospere ela deve ter uma base política e
jurídica, cuja estabilidade relativa deverá ancorar-se em dois
fundamentos: no princípio da “igualdade perante a lei” (“igualdade
formal”) e no princípio da “inviolabilidade dos direitos”. Um princípio
complementa o outro e eles mesmos nunca serão completamente
realizados, mas expressam a utopia política e histórica da igualdade
transformada em marco jurídico universal.
Apesar destes princípios estarem presentes como fundamentos das
constituições democráticas atuais, com um olhar histórico realista
ver-se-á que o Estado Democrático de Direito (não entendido, portanto,
metafisicamente como uma panacéia para todas as violências e
explorações) pode permitir a manutenção das opressões de classe, dos
privilégios sociais, das injustiças inerentes às diversas fases e
períodos de acumulação e “destruição criativa” do capital, sem violar
as suas regras formais: sem apelar para a “exceção”. Nixon fez com os
bombardeios “químicos” do Vietnam as mesmas barbáries que Hitler fez
com o “ghetto” de Varsóvia. Num país, o Juiz da “exceção” era o Fuhrer
(um indivíduo); no outro, era a Suprema Corte dos Estados Unidos (um
coletivo).
A grande diferença formal entre o Estado Democrático de Direito e o
Estado de Exceção Permanente é que, no primeiro, quem é o Juiz da
Constituição é um coletivo originário de um processo constituinte,
politicamente democrático; e no segundo (no Estado de Exceção
Permanente) quem é o Juiz da constituição é o Lider, “pois toda a lei
do Estado, toda a sentença judicial contém apenas tanto direito quanto
lhe aflua dessa fonte (o líder, o Fuhrer)”, como assevera Schmitt.
Mas há uma grande diferença “material”, entre ambos os estados ou
situações jurídico-políticas. O Fuhrer legitima-se a si mesmo, apenas
pela força; e o consenso é um consenso obtido principalmente pela
força. Aquele coletivo - que é o guardião e Juiz da Constituição nas
democracias- não se legitima principalmente pela força; mas o faz
principalmente pela ação política, pelo discurso da democracia. A força
é uma “reserva” substancial, para ser usada, aí sim, na “exceção”,
quando os mecanismos democráticos de dominação não mais correspondem às
necessidades práticas de controle social e manutenção do poder.
Para sintetizar minha opinião sobre o assunto e, logo após, reportar-me
a um fato histórico recente na democracia brasileira (o julgamento do
“mensalão”), assevero o seguinte: na “exceção” o Líder julga e executa
os “julgadores” e quem quiser, através da Polícia; no Estado
Democrático de Direito todos tem o direito formal a um julgamento justo
pelos Tribunais, dentro das “regras de jogo”, no qual a Polícia não é
uma mera extensão do Lider; logo, não compete a ela finalizar os
conflitos nem aplicar definitivamente a lei.
São diferenças formais, mas ocorre que as “diferenças formais” tem
forte influência na vida das pessoas, nas possibilidades de ação
política, na formação de núcleos de resistência ao arbítrio e ao
aparelhamento do estado, pelo controle total que os interesses
privados podem exercer sobre ele, de modo a subtrair completamente as
suas funções públicas. Forma e conteúdo, dizia Hegel, “convertem-se
incessantemente um no outro.” Os dois princípios mais revolucionários
forjados, até hoje, no direito moderno (o princípio da igualdade
perante a lei e o princípio da inviolabilidade dos direitos) são também
princípios de organização política da sociedade, e eles não permitem
-pois eles são exatamente a “anti-exceção”- o domínio da força bruta
dos interesses de classe, sem legitimação política.
O caso do “mensalão” será emblemático para democracia brasileira daqui
para diante e também para o Direito, em nosso país. Pode-se dizer, com
absoluta certeza, que nenhum dos Ministros votou contra a sua
consciência ou que tenha se comportado com venalidade. Nenhum dos
Ministros votou “controlado pela Polícia” ou mostrou-se desonesto nas
suas convicções e o julgamento dos réus deu-se, integralmente, dentro
do Estado de Democrático de Direito. Ninguém pode dizer que foi vítima
de pressão insuportável e ninguém pode dizer houve um julgamento de
“exceção”.
Dentro do Estado Democrático de Direito e das suas regras, o julgamento
transformou-se, isto sim, no julgamento de um Partido, de um projeto
político e, muito suavemente, do sistema político vigente. Quem tinha a
ideia de que o julgamento seria um julgamento a partir das provas,
sobre o comportamento de cada um dos réus, ou que cada um dos Ministros
não partiria da suas convicções ideológicas para chegar a uma das
doutrinas penais conhecidas para abordar o processo, tinha e tem uma
visão completamente equivocada do significado histórico do Estado de
Direito. O Estado Democrático de Direito abre exatamente estas
potencialidades de escolha, o Estado de Exceção não. Estas
potencialidades de escolha estão contidas no terreno da política, não
do direito.
No Estado Democrático de Direito, a ideologia do Magistrado “seleciona”
a doutrina jurídica, que ampara a decisão. Na ditadura (ou na
“exceção”) esta escolha é sufocada pelo olhar do Líder, através da
Polícia. A Teoria do Domínio Funcional dos Fatos foi, portanto, uma
escolha ideológica, feita para obter dois resultados: condenar os réus e
politizar o julgamento. Talvez algumas condenações não pudessem ser
proferidas apenas com as provas dos autos, mas sobretudo a doutrina
escolhida mostra que não bastava condenar os réus - alguns deles
tiveram seus delitos provados ou confessados - era preciso condená-los
pela “compra de votos” no Parlamento: a política (dos partidos) não
presta, os políticos são desonestos, a esquerda é a pior. Essa é a
mensagem que era preciso deixar através da politização completa da
decisão pela Teoria do Domínio.
O Supremo Tribunal Federal faz política o tempo inteiro como todos os
Tribunais Superiores do mundo e a vitória obtida pela direita
ideológica -muito bem representada pela maioria da mídia neste episódio
- ao transformar delitos comuns em delitos de Estado (compra de
votos), vai muito além deste episódio e não se sabe, ainda, quais os
efeitos que ele terá no futuro. Numa “sociedade líquida”, sem balizas
culturais firmes, onde a estética da violência é festejada em horário
nobre –com sangue e vitórias do culto da força- pode ser que ela vá se
diluindo ao longo do tempo.
Quando o Ministro Ricardo Lewandowski teve coragem de dissentir em
alguns votos, apenas dissentir: relativizar, pedir provas, impugnar uma
doutrina de ocasião, foi massacrado por comentários sardônicos,
ataques a sua integridade e a sua sabedoria jurídica pela mídia
vigilante. Além de pretender avisar que os réus já estavam julgados, a
mídia uniforme queria unanimidade. E quase obteve, pois as convicções
já estavam formadas, as decisões políticas já estavam consolidadas e o
Supremo Tribunal Federal estava julgando num clima de total liberdade
política, na semana das eleições.
Todos os Ministros se comportaram segundo as suas convicções e devem
ser respeitados, gostemos ou não dos seus votos. Mas é necessário
registrar que o único que o fez contra a maré, contra o senso comum já
preparado para a condenação coletiva, foi o Ministro Lewandowsky. Os
seus votos e a própria forma com que eles eram comentados pela mídia,
totalmente partidarizada no episódio e a maior parte dela ignorante em
Direito, também coloca uma questão de fundo para o futuro democrático
do país.
O preparo da opinião pública para festejar a condenação réus,
independentemente das provas, foi evidentemente uma ação política dentro
dos marcos do nosso Estado Democrático de Direito. Mas, pergunta-se:
isso não poderá ser, no futuro, um substitutivo da Polícia do Líder,
que julga, em última instância, os julgadores num regime de exceção? A
influência que os meios de comunicação exerceram para promover um
“clamor público” - que afinal não houve mas é óbvio que repercutiu nos
Ministros do Supremo - não foi além do saudável, numa democracia onde o
equilíbrio e a isenção na informação não são propriamente um predicado?
Parece-me que esta questão não é somente dos partidos de esquerda, mas
de todos os partidos democráticos do país, de todos os juristas sérios,
de todos os cidadão que independentemente de “gostarem”, ou não, de
política, apostam numa vida democrática cada vez mais sólida e
generosa.
O Brasil deve a Lewandowsky este alerta, pela sua conduta ética em se
indispor - por pura convicção - contra condenações já anunciadas. Este
Ministro é o Carl Schmitt ao contrário: quer que a regra seja sempre
superior à exceção. Lewandowski, além de ter feito história como os
demais, também contribuiu para uma memória de coragem e altivez
democrática.
Tarso Genro, Governador do Rio Grande do Sul
No Carta Maior
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