Ouvi estarrecido de uma ministra do Supremo que não achava razoável
supor que o ex-ministro não soubesse do esquema de pagamentos,
presumindo-se, desde logo, que os pagamentos teriam sido feitos para
comprar votos e não para pagar dívidas de campanha. Ela não disse que os
autos demonstram inequivocamente que Dirceu soubesse do esquema. Ela
disse o que teria dito um magistrado da ditadura: que Dirceu teve a
intenção de montar o esquema. O artigo é de J. Carlos de Assis.
Fui um dos últimos, talvez o último jornalista a ser processado por
crime de opinião nos termos da infame Lei de Segurança Nacional da
ditadura, em 1983. Havia feito uma série de reportagens na “Folha de S.
Paulo” vinculando uma trama financeira fraudulenta na cúpula da Capemi a
personagens proeminentes do antigo SNI, Serviço Nacional de
Informações. A acusação contra mim não era que houvesse mentido mas sim
que, ao divulgar informações que podiam até mesmo ser verdadeiras,
tinha, em hipótese, a intenção de desestabilizar o regime.
Assim era a Justiça da ditadura: julgava pela intenção imputada
subjetivamente, não pelo fato. Contudo, meu processo caiu em mãos de um
destemido juiz militar, Helmo Sussekind, que me deu o direito da
“exceção da verdade”. A exceção da verdade é a figura jurídica que
possibilita ao processado fazer a prova de que o que escreveu ou disse
era a verdade, independentemente de intenção. Esse, aliás, é o
fundamento que torna a liberdade de imprensa efetivamente justa. Do
contrário, seria uma cobertura para a calúnia, a injúria e a difamação.
Recordo-me dessa experiência pessoal porque vejo o Supremo Tribunal
Federal caminhar para um tipo de jurisprudência, no caso do chamado
mensalão, em que se substitui a criteriosa apuração do fato por uma
odiosa e subjetiva suposição sobre as intenções. Supõe-se, sem prova
convincente, que recursos financeiros mobilizados pelo PT foram usados
para comprar votos. Supõe-se, sem prova convincente, que esse esquema de
compra de votos foi comandado pelo ex-chefe da Casa de Civil José
Dirceu.
Até as pedras sabem que o sistema de coligações partidárias no Brasil,
dada a existência de mais de 30 partidos, implica transações financeiras
através de caixas um ou de caixas dois, sobretudo no que diz respeito a
compra de tempo de televisão nas campanhas eleitorais. Não há nenhuma
ideologia nesse processo, e os que gostariam que houvesse não conhecem a
democracia real nem aqui nem em nenhuma parte do mundo. Portanto, no
rescaldo das eleições, sempre há acertos financeiros a fazer por conta
dos acordos anteriores independentemente do comportamento corrente das
bancadas no Congresso.
O contorcionismo feito pelos procuradores e pelo relator do mensalão
para demonstrar uma vinculação entre pagamentos pelo esquema de Valério e
votações no Congresso é simplesmente ridículo. Não tiveram o cuidado
sequer de convocar um estatístico para examinar as correlações. Se
chamassem, veriam que não existem correlações significativas do ponto de
vista científico. Num processo que tem mais de 60 mil páginas, era de
se esperar um pouco mais de escrúpulo para quem cuida de julgar destinos
humanos e de suas liberdades.
No caso de Dirceu é ainda mais fantástico. Ouvi estarrecido de uma
ministra do Supremo que não achava razoável supor que o ex-ministro não
soubesse do esquema de pagamentos, presumindo-se, desde logo, que os
pagamentos teriam sido feitos para comprar votos (crime de corrupção
ativa e passiva) e não para pagar dívidas de campanha (irregularidade
eleitoral). Ela não disse que os autos demonstram inequivocamente que
Dirceu soubesse do esquema. Ela disse o que teria dito um magistrado da
ditadura: que Dirceu teve a intenção de montar o esquema!
Ainda há seis votos antes da decisão final. São seis votos que separam o
Supremo da vergonha de ter sacrificado inocentes sob pressão da uma
campanha de mídia infamante, cujo argumento mais sólido, em toda essa
tragicomédia, é de que é preciso pegar os peixes grandes para saciar a
sede de vingança da opinião pública em relação aos políticos. Sim, os
dirigentes do PT denunciados pelo chamado mensalão são aparentemente
peixes grandes. Contudo, chegaram aonde chegaram pelo voto popular no
exercício da democracia. O número de votos que os pôs lá é grande demais
para ter sido comprado.
Naturalmente que a manipulação da opinião pública pela mídia influi em
ministros de caráter fraco. Daí o risco para a Justiça e para a
democracia. Mas sempre existe uma saída. O ministro Levendowsky provou a
todos nós, que acreditam na independência do Judiciário, que nem tudo
está perdido. A própria transparência dos debates no STF ajudam aos mais
atentos a formar essa opinião: se por um lado ela favorece o estrelismo
do relator, por outro deixa clara a insuficiência da denúncia. Por
exemplo, ficou mais do que demonstrado que um mensalão, tal como
inicialmente “denunciado” na forma de pagamentos mensais regulares,
jamais existiu, tendo-se apenas conservado o nome por vício mídiatico.
(*) Economista e professor de Economia Internacional na UEPB, autor,
entre outros livros de Economia Política, do recém-lançado “A Razão de
Deus”, pela editora Civilização Brasileira. Esta coluna sai também nos
sites Rumos do Brasil e Brasilianas, e, ás terças, no jornal carioca
Monitor Mercantil.
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