A descoberta de que em 1995 o ministro Celso de Mello proferiu um longo
voto no qual defendia que apenas o Congresso tinha poderes para cassar o
mandato de um parlamentar ilumina vários aspectos do julgamento do
mensalão.
Decano do STF, em 1995 o ministro sustentou, com base no artigo 55 da Constituição, que:
“A norma inscrita no art. 55, § 2o, da Carta Federal, enquanto preceito
de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional
destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria
instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo
membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão
emanada de outro poder (o Poder Judiciário) implique, como conseqüência
virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria
perda do mandato parlamentar.”
“(…) É que o congressista, enquanto perdurar o seu mandato, só poderá
ser deste excepcionalmente privado, em ocorrendo condenação penal
transitada em julgado, por efeito exclusivo de deliberação tomada pelo
voto secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa
Legislativa.”
“Não se pode perder de perspectiva, na análise da norma inscrita no art.
55, § 2o, da Constituição Federal, que esse preceito acha-se
vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato
parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro poder
na esfera de atuação institucional do Legislativo.”
Vamos prestar atenção: Celso de Mello está dizendo com todas as letras
que, “salvo deliberação em contrário da própria instituição
parlamentar,” o mandato possui a garantia constitucional da
intangibilidade, impedindo que “uma decisão emanada de outro poder (o
Poder Judiciário), implique a suspensão dos direitos políticos e a
própria perda do mandato.” Diz ainda o ministro que o mandato só pode
ser cassado “por efeito exclusivo” de uma deliberação “tomada pelo voto
secreto e pela maioria absoluta dos membros de sua própria Casa
Legislativa.”
Precisa mais?
Precisa. Em outra passagem daquele voto, Celso Mello faz questão de
estabelecer diferenças entre a Carta em vigor, a de 1988, e a Emenda
Constitucional anterior, de 1969, que procurava formatar as leis da
ditadura nascida com o AI-5. Era um cuidado importante. A carta da
ditadura, que autorizava o funcionamento de um Congresso controlado,
onde o presidente da República divulgava lista de cassados sem o menor
pudor, dizia em seu artigo 149 que o “Presidente” e o “Poder
Judiciário” poderiam cassar mandatos.
Os próprios parlamentares estavam excluídos dessa decisão.
Compreende-se. Mesmo num regime sem liberdade partidária, e imensa
repressão sobre as organizações populares, em especial dos
trabalhadores, eles poderiam causar dores de cabeça.
Neste aspecto, a ditadura era coerente. Subtraia dos representantes do
povo – mesmo eleitos naquelas circunstâncias difíceis de um regime
militar – o direito de deliberar sobre a cassação de um mandato.
Examinando as duas cartas, Celso Mello conclui que uma decisão de outro
poder – fala explicitamente do Poder Judiciário – poderia representar
uma “tutela” ao “exercício do mandato parlamentar” e que a finalidade do
artigo 55 era inviabilizar “qualquer ensaio de ingerência” sobre o
Legislativo.
Precisa mais?
Precisa. O voto de Celso Mello em 1995 está longe de ser um caso
isolado. Até muito recentemente, era um ponto pacífico para vários
ministros da casa. Vários votaram no mensalão – para sustentar que o
Supremo tem o direito de cassar mandatos.
Em 2011, no julgamento de um deputado condenado pelo STF por
esterilização ilegal de mulheres no interior do Pará, os ministros
também votaram sobre a cassação de mandatos. Alguns votos são
significativos, conforme levantamento feito pelo repórter Erick Decat,
divulgado dias atrás por Fernando Rodrigues:
Luiz Fux, revisor – página 173 do acórdão: “Com o
trânsito em julgado, lance-se o nome do réu no rol dos culpados e
oficie-se a Câmara dos Deputados para os fins do art. 55, § 2º, da
Constituição Federal.
Marco Aurélio – página 177 do acórdão: “Também,
Presidente, ainda no âmbito da eventualidade, penso que não cabe ao
Supremo a iniciativa visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos
Deputados a deliberar quanto à perda do mandato, presente o artigo 55,
inciso VI do § 2º, da Constituição Federal. Por quê? Porque, se formos a
esse dispositivo, veremos que o Supremo não tem a iniciativa para
chegar-se à perda de mandato por deliberação da Câmara”.
Gilmar Mendes – página 241 do acórdão: “No que diz
respeito à questão suscitada pelo Ministro Ayres Britto, fico com a
posição do Relator, que faz a comunicação para que a Câmara aplique tal
como seja de seu entendimento
Ayres Britto (já aposentado) – página
226 do acórdão: “Só que a Constituição atual não habilita o Judiciário a
decretar a perda, nunca, dos direitos políticos, só a suspensão”.
Cezar Peluso (já aposentado) – página 243 do acórdão:
“A mera condenação criminal em si não implica, ainda durante a pendência
dos seus efeitos, perda automática do mandato. Por que que não implica?
Porque se implicasse, o disposto no artigo 55, VI, c/c § 2º, seria
norma inócua ou destituída de qualquer senso; não restaria matéria sobre
a qual o Congresso pudesse decidir. Se fosse sempre consequência
automática de condenação criminal, em entendimento diverso do artigo 15,
III, o Congresso não teria nada por deliberar, e essa norma perderia
qualquer sentido”.
Vamos ler de novo?
Fux não manda cassar. Pelo contrário: manda oficiar a mesa para “os fins
do artigo 55”, que exige deliberação por voto secreto e maioria
absoluta – da cassação. Para Marco Aurélio, “não cabe ao Supremo a
iniciativa visando compelir a Mesa diretiva da Câmara dos Deputados a
deliberar quanto à perda do mandato, presente o artigo 55, inciso VI do §
2º, da Constituição Federal.” Gilmar Mendes pede que se comunique a
decisão à Câmara para que a “aplique tal como seja de seu entendimento.”
Claro que ninguém está impedido de mudar de opinião ao longo da vida.
Muitas vezes, essa mudança é indispensável e positiva. Quem pode julgar?
O voto de Celso de Mello em 1994 está longe de ser uma analise
conjuntural. Aponta para traços permanentes que distinguem a
Constituição cidadã de 1988, sem “ingerência de outro poder”, daquela de
1969, que previa cassação de mandatos pelo poder judiciário, como o
Supremo fez com Chico Pinto em 1976.
Parece óbvio que ele – e outros colegas do STF – mudaram de opinião com o
passar do tempo. Ao julgar o mensalão do PT, concluíram que o artigo 55
está errado.
Passaram a ter receio de que os parlamentares não cassem o mandato dos deputados condenados à pena de prisão.
Concordo que pode ser absurdo, mas está na lei e é um direito deles. E
se os parlamentares concluírem, após ampla defesa, que o mandato não
deve ser cassado? É feio? Escandaloso? Imoral?
Repito: feio, escandaloso e imoral é romper a Constituição, desastre que
todos sabem como começam e, para evitar reações em contrário, fingem
não saber como terminam. (Todos sabem como terminam, não é?).
Em 2012, pelo menos quatro ministros do STF dizem que essa prerrogativa
está errada. Dizem que ela pode criar o inconveniente de ter um político
na cadeia – com o mandato no bolso.
Embora os juízes tenham mudado de opinião, a Constituição permanece a
mesma. Passou por várias reformas, recebeu emendas, mas o artigo 55
permanece lá, em seu formato original. O texto é o mesmo, com todos os
seus parágrafos e vírgulas. Temos então, um debate político — e não
jurídico. A discussão é de outra natureza.
Quem quer mudar a Lei Maior, só precisa respeitar o artigo primeiro, que
diz que todo poder emana do povo e será exercido por seus
representantes eleitos – e aprovar uma emenda constitucional.
Não vale dizer que a Constituição é aquilo que o Supremo diz que ela é.
Sabe por que? Isso pode ser válido nos Estados Unidos, país que criou
uma democracia aristocrática, com voto indireto, sem uma Assembléia
Constituinte, colocando acertos de cúpula acima da manifestação
popular. Não custa lembrar que George W. Bush foi empossado por decisão
da Suprema Corte.
No caso do Brasil, essa visão ignora a história do país. Os brasileiros
conquistaram sua soberania no fim da ditadura ao eleger uma Constituinte
pelo voto direto e secreto, rejeitando emendões, remendos e monstrengos
variados que se queria impor a partir do alto. A Constituinte foi a
resposta democrática contra as tentativas de fazer uma recauchutagem na
ditadura.
Traumatizados por mandatos cassados conforme as conveniências dos
generais, os constituintes fizeram questão de reforçar suas
prerrogativas.
Todo mundo adora Raul Seixas mas ninguém precisa cair no rock da
metamorfose ambulante nessa matéria. E a tal segurança jurídica?
A Carta pode ser modificada, sim. Mas a palavra final está no artigo
primeiro, aquele que diz que todo poder emana do povo, que o exerce
através de seus representantes eleitos.
Esta é a questão.
Por fim, uma observação. É
curioso que uma descoberta relevante sobre um dos ministros mais
influentes e respeitados do STF tenha sido obra de um tuiteiro anônimo.
Não foi assim uma revelação bombástica. O voto estava lá, nos arquivos
do STF.
O tuiteiro se apresenta com o pseudônimo de Stanley Burburinho, e deve ter lá seus motivos para não revelar a identidade.
O Brasil do início dos séculos XVII e XIX possuía vários personagens
dessa natureza, que se escondiam atrás de nomes falsos e apelidos
estranhos. O mais conhecido era um padre do Recife, chamado de O
Carapuceiro, que publicava um panfleto com notícias políticas e
denúncias.
Mas vivíamos sob o absolutismo, da Coroa portuguesa e depois sob a
Constituição promulgada sob a espada de Pedro I. A Censura era vista
como um dado normal da vida pública, assim como o trabalho escravo.
Nada a ver com os tempos da Constituição de 1988, concorda?
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