sábado, 3 de setembro de 2011

Saídas à esquerda

Sobrevivendo à desumanidade?
“Como quer Boaventura, é fundamental a defesa duma ‘democracia de alta intensidade’, isto é, que volte a agregar valores morais – de igualdade, fraternidade e justiça social”


Márcia Denser

Em dois artigos recentes, o sociólogo e pensador de esquerda Boaventura de Souza Santos, professor nas universidades de Coimbra (Portugal) e Wisconsin (EUA), realiza um preciso diagnóstico do estado catastrófico em que se encontra a sociedade atual e – algo raro de acontecer – aponta algumas saídas à esquerda (inclusive para a própria esquerda) no sentido de apagar um incêndio social de proporções inimagináveis, cujo resultado óbvio é o retorno à barbárie.

A propósito, uma frase de Michael Douglas em Wall Street 2, é lapidar, ele diz mais ou menos isto: “Se antes a ganância era censurável, hoje ela é legal!

Boaventura observa que os violentos distúrbios que têm explodido nas ruas do mundo – Europa, Oriente Médio, EUA – (que não ocorriam até um passado recente e cuja origem pode ser identificada em Seattle/1999, vejam que vida curta teve o Pensamento Único – 10 anos – da queda do Muro de Berlim e colapso da União Soviética em 1989 até 1999) realmente não são “um fenômeno isolado”, ao contrário, representam um perturbador sinal dos tempos. Sem perceber, as sociedades contemporâneas estão gerando um combustível altamente inflamável que flui nos subsolos da vida coletiva.

Tal combustível é constituído pela mistura de quatro componentes: a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e coletiva, a prática do racismo em nome da tolerância e o sequestro da democracia por elites privilegiadas, com a consequente transformação da política na administração do roubo “legal” dos cidadãos. Cada um destes componentes tem uma contradição interna: quando se superpõem, qualquer incidente pode provocar uma explosão:

- Desigualdade e individualismo. Com o neoliberalismo, o aumento brutal da desigualdade social deixou de ser um problema, tornando-se uma solução. A ostentação dos ricos e da riqueza transformou-se na prova do êxito de um modelo social que só deixa miséria para a imensa maioria dos cidadãos, supostamente porque estes não esforçam o suficiente para ter sucesso na vida (darwinismo social). Isso só foi possível através da conversão do individualismo num valor absoluto, o qual, paradoxalmente, só pode ser experimentado como uma utopia da igualdade: a possibilidade de que todos dispensem a solidariedade social!

- Mercantilização da vida. A sociedade de consumo consiste na substituição das relações entre pessoas pelas relações entre pessoas e coisas. Os objetos de consumo deixam de satisfazer necessidades para criá-las incessantemente, e o investimento pessoal neles é tão intenso quando se tem como quando não se tem. Os centros comerciais são a visão espectral de uma rede de relações sociais que começa e termina nos objetos. O capital, com sua sede infinita de lucros, submeteu à lógica mercantil bens que imaginávamos comuns a todos (como a água e o ar) ou demasiado pessoais (a intimidade e as convicções políticas) para serem comercializados no mercado. Entre acreditar que o dinheiro é a medida de todas as coisas e acreditar que se pode fazer tudo para obtê-lo, há um passo bem pequeno. Os poderosos dão esse passo todos os dias sem que nada ocorra a eles. Os despossuídos, que pensam que podem fazer o mesmo, terminam nas prisões.

- O racismo da tolerância. Não é uma coincidência: são irrupções da sociabilidade colonial que continuam dominando nossas sociedades, mesmo décadas após do fim do colonialismo (o racismo é apenas um componente, já que de todos os distúrbios mencionados participam jovens de diversos grupos étnicos). Mas é importante, porque reúne a exclusão social com um elemento de corrosão da auto-estima – a inferioridade do ser agravada pela inferioridade do ter.

- O sequestro da democracia. O que há em comum entre os distúrbios e a destruição do bem estar dos cidadãos provocada pelas políticas de austeridade dirigidas pelas agências classificadoras e os mercados financeiros? Ambos são sinais das limitações extremas da ordem democrática. Os jovens rebeldes cometem delitos, mas não estamos diante de delinquentes nem terroristas, tal supersimplificação é idiota. Estamos frente a uma denúncia violenta de um modelo social e político que tem recursos para resgatar os bancos, mas não para resgatar os jovens duma vida sem esperanças, do pesadelo de uma educação cada vez mais cara e irrelevante, dado o aumento do desemprego; do completo abandono em comunidades que as políticas públicas anti-sociais transformaram em campos de treinamento da raiva, da anomia e da rebelião.

Entre o poder neoliberal instalado e os rebeldes urbanos há uma simetria perturbadora. A indiferença social, a arrogância, a distribuição injusta dos sacrifícios estão semeando o caos, a violência e o medo. Livre das esquerdas, o capitalismo voltou a mostrar a sua vocação anti-social. Por isso, retorna a urgência no sentido de reconstruir as esquerdas para evitar a barbárie. Como recomeçar? Pela aceitação de algumas idéias. Aqui, Boaventura, didaticamente, levanta nove pontos essenciais:

Primeiro, o mundo diversificou-se e a diversidade instalou-se no interior de cada país. A compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão ocidental do mundo; não há internacionalismo sem interculturalismo;

Segundo, o capitalismo concebe a democracia como um instrumento de acumulação; se for preciso, ele a reduz à irrelevância e, se encontrar outro instrumento mais eficiente, dispensa-a (o caso da China). A defesa da democracia de alta intensidade é a grande bandeira das esquerdas. (grifo nosso)

Terceiro, o capitalismo é amoral e não entende o conceito de dignidade humana; a defesa desta é uma luta contra o capitalismo e nunca com o capitalismo (no capitalismo, mesmo as esmolas só existem como relações públicas).

Quarto, a experiência do mundo mostra que há imensas realidades não capitalistas, guiadas pela reciprocidade e pelo cooperativismo, à espera de serem valorizadas como o futuro dentro do presente.

Quinto, o século passado revelou que a relação dos humanos com a natureza é uma relação de dominação contra a qual é preciso lutar; o crescimento econômico não é infinito.

Sexto, a propriedade privada só é um bem social se for uma entre várias formas de propriedade e se todas forem protegidas; há bens comuns da humanidade (como a água e o ar).

Sétimo, o curto século das esquerdas foi suficiente para criar um espírito igualitário entre os humanos; este é um patrimônio da esquerda que esta só tem dilapidado;

Oitavo, o capitalismo precisa de outras formas de dominação para florescer, do racismo ao sexismo e à guerra e todas devem ser combatidas.

Nono, o Estado é um animal estranho, meio anjo meio monstro, mas, sem ele, monstros piores estariam à solta. Melhor Estado, sempre; menos Estado, nunca.

Como quer Boaventura, é fundamental a defesa duma “democracia de alta intensidade”, isto é, que volte a agregar valores morais – de igualdade, fraternidade e justiça social. Resta saber até que ponto (e até quando) o espírito humano será capaz de sobreviver sem eles, isto é, sem a própria humanidade.


Sobre a autora

Márcia Denser

* A escritora paulistana Márcia Denser publicou, entre outros, Tango fantasma (1977), O animal dos motéis (1981), Exercícios para o pecado (1984), Diana caçadora/Tango Fantasma (Global,1986, Ateliê, 2003,2010, 2a.edição), A ponte das estrelas (Best-Seller,1990), Caim (Record, 2006), Toda prosa II - obra escolhida (Record, 2008). É traduzida em nove países e em dez línguas: Alemanha, Argentina, Angola, Bulgária, Estados Unidos, Espanha (catalão e galaico-português),Holanda, Hungria e Suíça. Dois de seus contos - "O vampiro da Alameda Casabranca" e "Hell's Angel" - foram incluídos nos Cem melhores contos brasileiros do século, organizado por Ítalo Moriconi, sendo que "Hell's Angel" está também entre os Cem melhores contos eróticos universais. Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, é pesquisadora de literatura e jornalista. Foi curadora de literatura da Biblioteca Sérgio Milliet em São Paulo.

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