domingo, 4 de dezembro de 2011

Democracia corintiana: o legado do Dr. Sócrates (Em tempos de copa do mundo: O Futebol analisado sob outra ótica)



Democracia Corintiana, o futebol pensado como parte da sociedade e em sintonia com seus anseios
Democracia corintiana



A democracia corintiana é um dos pontos altos da relação esporte/política na história recente brasileira. A maneira como os atletas se relacionavam com o poder constituído do clube demonstravam claramente a vontade, subscrita, desses cidadãos de, alguma forma, de poder influenciar uma das maiores torcidas brasileira, ou mais além, poder influenciar a consciência do povo e sua visão sobre a política nacional e suas consequências no dia-a-dia, tudo isso sob uma ditadura militar, apesar de fatigada e decadente, ainda institucionalizada.

Muitos desses atletas, liderados por Sócrates, participaram de atos políticos no início dos anos 1980, destacadamente na campanha pelas diretas, usando faixas ao entrar em campo clamando pela democracia.

O texto de Sócrates e o vídeo mostram algumas das postulações legítimas da democracia corintiana e de suas relações transparentes com o poder. Cobrar, participar e influenciar os rumos.

Confiram:



Memórias do cárcere

Sócrates

Quanto mais a sociedade se moderniza e tabus são quebrados, o futebol, parece, caminha para trás. Eu tinha apenas 14 anos quando os estudantes franceses tomaram as ruas de Paris para lutar por suas convicções. Aquelas manifestações tornaram-se um marco na história contemporânea da humanidade. Romperam-se dogmas e a filosofia que pregava a paz e o amor invadia cada canto de nossas mentes para nos mostrar a nova ordem.


Fomos contaminados por aquela pregação simples e definitiva. Passamos a viver em harmonia com nossas características e a respeitar nosso ser. Todos os povos do mundo, de alguma forma, foram estimulados a rever os seus conceitos.


Nós, cá abaixo do Equador, talvez tenhamos sido os mais entusiastas da nova ideia. Por nossa forma de encarar o mundo, por nossa cultura e pela miscigenação, que nos deram uma capacidade de amar e libido incomparáveis, abraçamos plenamente a liberdade sem limites.


Em plena adolescência, eu não podia ter sido mais contaminado. Apesar da timidez que insistia em atrapalhar os sonhos mais íntimos, pude sentir intensamente a maravilha da libertação sexual dessa geração. Nossos pais, que haviam sido criados em uma situação diametralmente oposta, nada puderam fazer contra aquela onda. Namorei à vontade, comecei a chegar em casa cada vez mais tarde, frequentava as festas que queria e, mesmo com os inevitáveis confrontos de geração, pudemos resistir.


Seis anos depois – na época, parecia uma eternidade –, cheguei ao meio do futebol. A primeira e definitiva instituição com que tomei contato foi com a famigerada “concentração”. Era inacreditável que naqueles tempos tão “modernos” ainda se utilizasse tamanha aberração.


No início, o isolamento compulsório às vezes ultrapassava 48 horas a cada jogo. Como fazíamos duas partidas por semana, tínhamos menos tempo livre do que os condenados em regime aberto. O pior é que ficávamos em uma casa apertada, cheia de beliches, literalmente uns em cima dos outros.


De cara, passei a questionar aquela prática. Não podia entender como as razões de sua existência podiam ser tão frágeis. “Para que vocês não façam besteiras”, diziam. Até parece! E o pior é que entre as besteiras incluía-se o sexo. Ora, façam-me o favor. Desde quando o ato sexual atrapalha o quer que seja? Só se for na cabeça dos gênios que comandam o futebol.


Com o tempo, consegui encurtar o absurdo: 24 horas no máximo. Ainda era muito. Como estava na faculdade, passei a me escalar nos plantões de sábado. Assim, não perdia o meu tempo naquela escola que só ensina a não fazer absolutamente nada.


A pior coisa do mundo é a ociosidade. E isso é o que não falta num ambiente desses. Também descobri que o que provoca o desatino de beber em demasia (ou o uso de outras drogas) e da busca incessante por mulheres é exatamente essa prisão.


Imediatamente após a libertação se quer fazer tudo o que não pôde ser feito. E isso, em poucas horas. É o resgate do tempo inutilizado. É a compensação. É uma forma de reagir. É a insubordinação sem controle, é verdade. Mas não tenho dúvidas de que é da concentração que nascem os desvios de conduta de nossos jogadores. De orgias a baladas, passando pelo assédio sexual. Ora, deixem os meninos crescer!


Chegando ao Corinthians, com a implantação da Democracia Corintiana, um dos assuntos mais interessantes para mim era a dita-cuja. A turma não queria, porém, mudar. Também, a concentração serve para protegê-los da opinião pública! Demoramos seis meses para torná-la opcional.


A partir daí, a vida passou a ser uma maravilha. Ficávamos em casa, brincávamos e educávamos nossos filhos, jantávamos com nossas famílias, comíamos o que estávamos habituados com o tempero que gostávamos, dormíamos com nossas mulheres, fazíamos sexo – por que não? – à noite e quase sempre pela manhã, tomávamos nosso café, acompanhados de nosso jornal predileto, líamos um livro antes de ir para o hotel, chegávamos com a família, nos confraternizávamos e íamos todos no ônibus para o estádio.


Corríamos como crianças. Tínhamos prazer em jogar, nos divertíamos e divertíamos nosso fiel público. Era um tesão. Tesão de viver e atuar com liberdade, porém com maior responsabilidade em relação ao nosso trabalho. Os resultados todos conhecem, mas o mais importante de tudo gerado por lá foi a maturidade adquirida por todos os companheiros. Muito diferente dos dias de hoje ou da própria história dos jogadores brasileiros

Carta Capital

*Publicado originalmente em 17 de junho de 2010.

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