A possibilidade de convocação de jornalistas e/ou empresários de mídia
para depor na CPMI do Cachoeira provocou uma unânime reação contrária da
grande mídia brasileira. O argumento principal é de que jornalistas
e/ou empresários de mídia não poderiam se submeter ao constrangimento de
serem questionados publicamente por deputados e senadores. Afinal,
políticos constituem alvo permanente do “jornalismo investigativo”. E,
claro, a convocação representaria uma perigosa ameaça às liberdades de
expressão e da imprensa.
Da relação inicial de pessoas convocadas a depor na CPMI, aprovada na
reunião do dia 17 de maio, não constam jornalistas nem empresários de
mídia.
Há relatos de que ações de bastidores foram realizadas por altos executivos dos grupos Globo e Abril
junto a partidos políticos e parlamentares, inclusive com ameaças de
retaliação política, caso fossem convocados os suspeitos de relações
promíscuas com o esquema criminoso. Dois dos principais grupos de mídia
brasileiros considerariam inaceitável a convocação de jornalistas e/ou
empresários – independente das comprometedoras conversas telefônicas
já conhecidas – entendida como “um precedente perigoso para o futuro” e
“uma verdadeira humilhação para toda a classe” (ver aqui).
Estarão corretos os argumentos e será que os temores alegados se justificam?
Última Hora e TV Globo
Em países de tradição democrática consolidada, a convocação de
jornalistas e/ou empresários de mídia para esclarecer suspeitas
relativas a atividades empresariais e ao exercício profissional, em
comissões no parlamento e em inquéritos policiais, não só tem sido feita
como não é considerada constrangimento ou ameaça. Ao contrário, a
convocação é entendida como servindo ao interesse público e à democracia
e é aplaudida, inclusive, pela mídia tradicional.
O melhor exemplo disso é o que está acontecendo na Inglaterra em
relação à investigação do grupo News Corporation, tanto na Câmara dos
Comuns, quanto no Inquérito Levinson (ver “As diferenças entre Brasil e Inglaterra”).
Aqui mesmo na Terra de Santa Cruz, ao contrário do que alega a grande
mídia, há pelo menos dois precedentes importantes: a CPI da Última Hora, em 1953 e a CPI Globo x Time-Life, em 1966.
Na CPI da Última Hora, sugerida ao presidente Getúlio Vargas
pelo próprio Samuel Wainer com o objetivo de investigar as operações de
crédito realizadas entre o Grupo Wainer e o Banco do Brasil, foram
convocados os jornalistas Samuel Wainer e Carlos Lacerda, que prestaram
dois depoimentos transformados, respectivamente, nas publicações Livro branco contra a imprensa amarela e Preto e branco (ver aqui).
Na CPI Globo x Time-Life, criada “para apurar os fatos relacionados com a organização Rádio e TV e jornal O Globo com as empresas estrangeiras dirigentes das revistas Time e Life”,
foram convocados, dentre outros, Rubens Amaral, ex-diretor geral da TV
Globo; Joseph Wallach, assessor técnico de grupo Time-Life junto a TV
Globo; Robert Stone, correspondente do grupo Time-Life no Brasil;
Walter Clark, diretor-geral da TV Globo; João Calmon, dos Diários
Associados e presidente da Abert; e o diretor presidente da TV Globo,
“doutor” Roberto Marinho, que além de prestar depoimento por duas horas
ininterruptas, submeteu-se ainda a longuíssimo questionamento (cf.
Projeto de Resolução nº 190 de 1966 [Relatório Final], publicado no Diário do Congresso Nacional I, Suplemento B, em 12/1/1967, pp. 1-79; ver ainda, neste Observatório, “Para ver a TV Globo”).
Interesse público e democracia
É verdade que lá se vão várias décadas, as circunstâncias políticas, a
composição da Câmara dos Deputados, a identidade doutrinária dos
partidos e as motivações eram outras. De qualquer maneira, não se
justifica o argumento do “precedente” alegado pelos executivos da grande
mídia: no passado, o Congresso Nacional convocou e tomou depoimentos
de jornalistas e empresários de mídia em Comissões Parlamentares de
Inquérito.
Quando se trata de esclarecer práticas, identificar autores e propor
medidas de proteção para salvaguardar o interesse público e a
democracia, os únicos critérios que devem prevalecer para a convocação
ou não de qualquer cidadão para depor em uma CPI são a existência
fundada de suspeitas de atividades criminosas.
A observância desses critérios é o que se espera dos membros da CPMI do
Cachoeira na medida em que o trabalho avance e que, eventualmente,
surjam informações complementares confirmando a necessidade de
convocação de jornalistas e/ou de seus patrões. Por que não?
Venício A. de Lima, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, entre outros livros, de Regulação das Comunicações – História, Poder e Direitos; Paulus, 2011
No Observatório da Imprensa
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