“Porque existem fronteiras que não podem nem devem ser rompidas.” Foram
estas as palavras que escolhi para colocar um ponto final em meu
último artigo no Observatório da Imprensa (“Sem interesse pelos escândalos”),
tratando do Festival de Grampos Legais que Assolam o País (Fegralap),
clara alusão ao saudoso Stanislaw Ponte Preta com seu genial Festival
de Besteiras que Assola o País (Febeapá). Pois bem, retorno ao tema,
pois há muito ainda a explicitar e muitas linhas que temem ser
esmagadas pela contundência das entrelinhas.
As fronteiras – sempre tênues em se tratando de imprensa e crime
organizado – são necessárias quando vivemos em um Estado de direito.
Essas fronteiras são demarcadas pelas leis. E fora destas o que existe é
a lei do mais forte, a tirania e a vilania em toda a sua gama de
obscuridades. São as fronteiras éticas e morais que distinguem
civilização e barbárie.
Agora, o país assume-se perplexo ante à enxurrada de gravações de
ligações telefônicas conseguidas de forma legal, absolutamente dentro
dos marcos do Estado de direito. Tais gravações escancaram o grau de
cumplicidade que a imprensa e contraventores, agentes públicos e
empresários, políticos e profissionais da arapongagem alcançaram em seu
intento para fortalecer ampla gama de atividades criminosas.
Por ironia do destino, o personagem central até o momento ostenta como
alcunha o vocábulo “cachoeira”. E cachoeira é, senso comum, queda
d’água. Não qualquer queda d’água, mas, sim, quedas com grande volume
de água, o que lhes dá um aspecto majestoso e turístico, a exemplo das
cataratas do Iguaçu (Brasil), de Niágara (Estados Unidos), Khon (Laos),
Vitória (África). Cachoeira não é catarata, ensina-nos os
dicionaristas. Esta última exige que haja um grande caudal e que se
apresente em forma de cortina. A catarata se caracteriza pela extrema
força da água a corroer as rochas em sua parte parte baixa. Cachoeira,
alerta-nos os expecialistas no vernáculo lusitano, é bem diferente de
cascata, uma vez que esta possui uma queda que nasce de uma massa de
rochas de inclinação irregular, no sentido vertical, na qual a água
desliza sobre uma série de declives acidentados. Cachoeira não é salto.
Este recebe o nome devido à sua queda ser em forma de esguicho, e em
queda ininterrupta de grande altura.
Agora surge uma rara oportunidade de se agregar novos significados ao
vocábulo “cachoeira”. E o terreno é o da política, aquela política que
vive de quedas, cascatas, saltos e sobressaltos. É já nome de Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito, reunindo 16 senadores e 16 deputados e
com prazo inicial de duração de 180 dias. É nesta CPMI que serão
levados à luz os novos significados de Cachoeira, tais como:
1. Epíteto do insígne contraventor brasileiro Carlos Augusto de
Almeida Ramos, personagem singularíssimo que ganhou notoriedade da
imprensa e opinião pública brasileira, referido inclusive pelo New York Times como “Charlie Waterfall”, e que saiu do quase completo anonimato pelo site e pelas páginas da revista Época,
em edição de 13/2/2004, onde, em imagens gravadas por ele mesmo, é
extorquido por Waldomiro Diniz, então funcionário da Casa Civil da
Presidência da República, dando-se então início a todo um tumultuado
processo político alcunhado “mensalão” pela grande imprensa;
2. Epíteto do dublê de empresário de jogos e principal
contraventor atuante na seara de jogos ilegais Carlinhos Cachoeira,
dono de ambição desmedida, como a de colocar um seu protegido, o
senador goiano Demóstenes Torres como futuro prefeito de Goiânia,
futuro governador de Goiás, futuro candidato à Presidência da República
do Brasil e futuro membro do Supremo Tribunal Federal do país;
3. Epíteto do mentor do maior esquema de crimes até o momento
desbaratado pela Polícia Federal, tendo como protagonistas centrais
políticos de prestígio considerados pela grande imprensa como “acima de
qualquer suspeita”, governadores de estado de amplo leque
político-partidário, integrantes das altas esferas do Poder Judiciário,
e com o auxílio luxuoso de uma das mais audaciosas empreiteiras
brasileiras, empresa esta que em menos de uma década saiu de um simples
traço em grau de importância econômico-financeira para ocupar o espaço
de um titã da construção civil, com obras monumentais como o Maracanã,
no Rio de Janeiro, e boa parte da malha rodoviária nacional;
4. Epíteto do idealizador do mais vasto, antigo, organizado,
contínuo e ousado sistema ilegal de escutas telefônicas do país,
empregando ex-agentes do antigo Serviço Nacional de Informação na
tarefa de flagrar, em situações suspeitas, alvos a serem corrompidos,
chantageados e achacados, fossem da esfera pública ou da esfera
privada;
5. Epíteto do personagem mais eficiente na arte da delinquência
pura e simples, criando seu próprio braço midiático e, com este,
elevando bandidos com estatura moral da altura de lâmina de barbear
deitada aos píncaros da retidão de conduta e da ilibada moral que
somente se pode exigir de cidadãos que se autoinvestem do dever de
pontificar sobre as virtudes da moral e da ética no trato da res publica,
além de “pautar” os destinos da vida política do país por intermédio
de veículo de comunicação com alta capilaridade nas classes média e
alta, plantando notas, notícias e reportagens contra seus inimigos
potenciais, erodindo o capital moral de governos democraticamente
eleitos, sabotando suas políticas públicas e levando o país a seguidos
ataques de nervos – ora estamos na “República dos Grampos”, ora vivemos
num “Estado Policialesco”, ora estamos investidos da ira santa de
derrubar ministros de Estado em série;
6. Epíteto da personalidade acostumada tanto às sombras espessas
do submundo do crime quanto aos holofotes da ribalta, negociando
propinas no varejo e a granel, adquirindo laboratórios farmacêuticos,
bens imóveis de alta voltagem, seja na bucólica Goiânia ou na na
reluzente Miami, a Meca de dez em cada dez novos ricos brasileiros em
terra americana;
7. Epíteto de articulador político imbatível, reunindo sob seu
extenso guarda-chuva de benesses, privilégios e ilicitudes desde
deputados estaduais a promotores públicos, deputados federais e
autarquias estaduais, de senador da República a chefe de sucursal de
veículo de imprensa com circulação nacional, de governador de estado a
diretor de empreiteira bem aquinhoada com a verbas públicas em estados
tão diversos quanto Goiás, São Paulo e Rio de Janeiro;
8. Epíteto de sagaz arquiteto de negócios e negociatas que, não
obstante os muitos tentáculos de sua organização criminosa,
explicitados em cerca de 3 mil horas de escutas feitas com autorização
judicial, nas quais pululam vozes inconfundíveis de pessoas até há bem
pouco blindadas pela grande imprensa – grande imprensa que se sente
tolhida a erguer à sua volta pesada cortina de constrangedor silêncio,
sem poder noticiar condutas claramente ilegais por parte de seus pares,
dentro de uma lógica corporativista que, como diria certo
ex-presidente da República, nunca antes fora vista neste país. Fato é
que à falta de temas “suculentos” a noticiar, assuntos em que os
malfeitos sejam personificados pelos outros (e não por eles mesmos),
optam por destacar em suas matérias de capa questões tão relevantes
quanto a altura pessoal na busca do sucesso profissional ou a não menos
tonitruante descoberta de que o poder finalmente é das mulheres.
Interesses subalternos
Hannah Arendt foi assertiva quando disse que só pode existir espaço
comum e público criado voluntariamente pelas pessoas. Porque para além
desse espaço o que existe é a não-existência, a luta fraticida de todos
contra todos, no mais cândido cenário de barbárie institucionalizada.
Sempre que se busca alçar à condição de plataforma política temas como
“implacáveis com a corrupção”, “a serviço da moral e da ética” ou
“paladinos do bem-estar social sem cobrança de impostos”, é sinal de
que algo muito errado está acontecendo nas entranhas do país.
É fato que a ocorrência de escândalos de corrupção, existentes ou
pré-fabricados, reais ou ilusórios, sempre precede os golpes de Estado,
a supressão das garantias fundamentais da pessoa humana, o império do
arbítrio e da tirania. De acordo com Hannah Arendt, como bem assinalou
um leitor, quando alguém ou algum grupo, seja político, econômico ou
midiático, pretende desestabilizar o governo para derrubá-lo, o que na
verdade está promovendo é a expansão da terra arruinada, do descrédito
das instituições democráticas e a supressão do espaço diálogico que
pode ser ensejado pela política.
Então, há que se omitir do bom combate? Não, muito ao contrário. Há,
sim, que se destinar à justiça e aos seus muitos tentáculos, códices de
leis e experiência jurisprudencial, os meliantes que corrompem e que
são corrompidos, sejam das esferas política, econômica e midiática ou
não.
Existem, também, fronteiras que não podem ser ultrapassadas sem que se
arque com as consequências – uma destas é a prática do jornalismo
arredio à busca da verdade, apaixonado pela mais recente versão a sair
do forno de interesses mesquinhos, subalternos e delituosos, e cúmplice
da realidade que deseja criar, avesso à realidade dos fatos,
aprisionado às suas próprias circunstâncias e à falibilidade que, de
tão humana, lhe é inerente.
Washington Araújo
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