O mensalão e o photoshop de um tempo histórico
Saul Leblon
Quando Serra ataca blogs críticos, classificando-os de 'sujos', ou se
refere ao PT como um partido que usa métodos nazistas, e Veja faz do
photoshop seu principal argumento 'jornalístico' na demonização de
lideranças adversárias -como na capa da edição desta semana, com o
ex-ministro José Dirceu - , o objetivo é infantilizar o discernimento da
sociedade, quebrar seu senso crítico para inocular valores e legitimar
interesses que de outro modo figurariam como controversos, ou mesmo
intragáveis, no imaginário social.
A infantilização da política é a tradução 'popularesca' da
judicialização, o recurso extremo de um tempo em que projetos e
referências históricas do conservadorismo foram tragados pela
conflagração entre os seus interesses e as urgências da sociedade humana
- entre elas a urgência ambiental e a urgência, a ela associada, de se
convergir para formas mais sustentáveis de produção e repartição da
riqueza.
Órfãos da crise do Estado mínimo, açoitados diariamente pelo noticiário
econômico, soterrados nos escombros das finanças desreguladas --aqui e
alhures-- que argumento lhes resta, além do photoshop dos fatos na
tentativa, algo derrisória, de ainda vender peixe podre como iguaria
inexcedível?
Nos EUA, a extrema direita e seus veículos, a exemplo das respectivas
versões tupiniquins, usaram e abusaram do photoshop para implantar
chifres demoníacos no perfil essencialmente cool de Obama, ademais de
classificá-lo, ora de comunista, ora de nazista, com direito ao
bigodinho do Führer. A extrema direita e a direita norte-americana não
podem permitir a dissecação política do colapso financeiro - fruto de
sua costela - em outro ambiente que não o photoshop e a barragem
judicial às medidas requeridas pela desordem reinante.
Semi-informação, assim como a semi-cultura do bueiro televisivo, formam o
lubrificante da infantilização e da impenetrável judicialização da
política. O episódio chamado de 'mensalão' cumpre o papel de prato de
resistência dessa ração tóxica servida à opinião pública nacional. O
tema efetivo do julgamento que se inicia esta semana no STF argüi os
alicerces do sistema político brasileiro. O nebuloso financiamento
privado das campanhas eleitorais, indissociável da rejeição conservadora
ao financiamento público, é a contraparte de um interdito mais amplo à
presença do Estado - leia-se, do interesse público - em todas as esferas
da vida social e econômica.
A direita nativa - e seu dispositivo midiático - sabe que o cerne da
questão refere-se à prática do caixa 2 de campanha, uma degeneração
intrínseca à entrega de um bem público, a eleição, à lógica de mercado. O
jogo do toma-lá-dá-cá instaurado a partir da indução à busca de
recursos privados não poupa direita ou esquerda. Todos os partidos foram
e são reféns desse moedor que abastarda projetos e rebaixa a soberania
democrática.
O PSDB de Serra, por sinal, desfruta o cume do pódium como pioneiro e
virtuose, com o comprovado engate do valerioduto mineiro ao caixa 2 da
fracassada tentativa de reeleição do ex-presidente do partido, Eduardo
Azeredo, em 1998. Romper esse dínamo implica, na verdade, alargar as
fronteiras da democracia, libertando-a não apenas do dinheiro privado,
mas também dos limites exauridos do sistema representativo,
revitalizando-o com a ampliação de mecanismos de consultas e referendos
mais regulares e adequados às demandas de participação da cidadania.
O photoshop da Veja responde a esse divisor histórico desenhando
chifrezinhos colegiais em Chávez, por exemplo. Ao reduzir a crise da
economia e da sociedade a um tanquinho de areia, a direita brasileira
quer garantir o seu recreio nas próximas semanas, fantasiando a hora do
lanche à sua conveniência, com a esperada ajuda de alguns bedéis
togados. Pode ser que atinja seu objetivo. Mas o fará no efêmero espaço
do faz de conta judicial em que pretende circunscrever a história. O
mundo real, que o photoshop tenta desesperadamente congelar, esse já
ruiu.
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