10/01/2013 - 03h00
À brasileira
A decisão, adotada na Venezuela, de adiar indefinidamente a posse do
hospitalizado Hugo Chávez tem um precedente: é milimetricamente igual à
decisão que adiou indefinidamente a posse do hospitalizado Tancredo
Neves. O que faz com que a decisão no caso de Chávez receba exaltada
condenação moral no Brasil e no caso de Tancredo Neves fosse louvada,
com alívio e emoção, pode ser muito interessante. Mas não é para um
artiguinho. E não é tão difícil de intuir, ao menos na superfície.
Convém lembrar que a crítica à solução brasileira só veio, e muito
forte, no segundo passo daquele veloz processo. Foi quando a decisão à
brasileira avançou muito mais do que a Venezuela: morto Tancredo, o
mandato que não recebeu e a Presidência foram transferidos ao vice, sob
muita contestação jurídica e ética.
As circunstâncias venezuelana e brasileira são diferentes? Sim,
claro. As circunstâncias são sempre diferentes. Mas sem essa de que a
oposição Venezuela está lutando pela democracia, e o chavismo é um
sistema contrário à liberdade, e coisa e tal. Seja o que for o chavismo e
o que pretenda a "revolução bolivariana", o que a oposição quer é
restaurar o sistema de poder anterior: um dos mais corruptos e
socialmente opressores da América Latina, de menor e mais imoral
"liberdade de imprensa" e de pensamento.
Ao longo do século passado, a Venezuela dos hoje saudosistas deixou
exemplos de barbaridade ditatorial escandalosos mesmo para o padrão
latino-americano, caso do ditador-bandido Perez Jimenez, entre outros; e
uns dois governos decentes, digo dois só para não deixar o romancista e
presidente Romulo Bittencourt sem companhia em meio a cem anos.
Mas, a não ser muito eventuais obviedades "de esquerda", nunca li ou
ouvi críticas no Brasil aos donos daquela Venezuela e seu sistema de
domínio e exploração.
O que se passa na Venezuela não é uma divergência entre as condições
jurídicas e temporais de uma posse, incerta além do mais, na
Presidência. Posse de um eleito, também é bom lembrar, em eleições de
lisura aprovada por comissões internacionais de fiscalização, entre as
quais a respeitadíssima Fundação Carter, com a presença destemida do
democrata Jimmy Carter.
A conduta do Itamaraty diante do problema venezuelano, na qual
expressa a posição oficial Brasil, mais uma vez se orienta pelo
princípio de que se trata de assunto interno do país vizinho, sem
justificativa para qualquer interferência externa a ele.
Marco Aurélio Garcia foi mandado, como assessor presidencial de
assuntos internacionais, recolher em dois dias as informações,
necessárias ao governo brasileiro, sobre o estado de Chávez e sobre a
situação política venezuelana. Não houve indicação alguma de que seu
comentário representasse uma posição assumida pelo governo brasileiro.
Para Marco Aurélio Garcia, conforme exposto na Folha pela repórter
Fernanda Odilla, "como o presidente foi reeleito, 'não há um processo de
descontinuidade' se ele não tomar posse formalmente" hoje. Há, sim. Não
há descontinuidade pessoal. Mas há descontinuidade institucional.
Uma posse presidencial não importa pelo empossado, que pode ser ótimo
ou lamentável. A importância é institucional: o início de um mandato na
Presidência. E segundo mandato é outro mandato. Como constatado no
editorial da Folha "Impasse na Venezuela", de ontem, "o texto
constitucional [venezuelano] não responde de maneira inequívoca às
dúvidas suscitadas" sobre o impedimento atual da posse em novo mandato.
Mas, em se tratando de Chávez, é válido dizer que "adiar
indefinidamente" é inconstitucional, é arbitrariedade, é opressão.
"Brasileiro não tem memória." Ou, se lhe convém, adia indefinidamente.
Janio de Freitas, colunista e membro do Conselho Editorial da Folha, é um dos mais importantes jornalistas brasileiros. Analisa com perspicácia e ousadia as questões políticas e econômicas. Escreve na versão impressa do caderno "Poder" aos domingos, terças e quintas-feiras.
OBS. Transcrito do Jornal Folha de São Paulo - Imagem/Ilustração de nossa responsabilidade
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