ESQUERDA VOLVER!
Raul
Longo
Bom
companheiro da então chamada blogosfera lulista me escreveu suas considerações
sobre os motivos das manifestações populares ocorridas no Rio de Janeiro,
comentando os desvios das administrações públicas e o descaso com setores
populares da população carioca.
Depois
enviou uma análise de Jean-Luc Mélenchon do Partido Comunista Francês sobre a
onda de manifestos no Brasil. Respondi e em retribuição enviei considerações do
Valter Pomar da Articulação de Esquerda do PT sobre os desvios e necessários
reajustes no partido e no governo para responder ao clamor
popular.
São
três textos longos, mas que pelo conteúdo crítico sugerem diferentes reflexões
sobre o momento brasileiro. De minha parte, a percepção de um militante, seguida
da percepção de um integrante do partido governista, finalizando com a de um
observador de outro país e continente.
Saudades de teus textos e ponderações que tanto me ensinaram!
Há muito lamentava não mais os encontrar e por vezes tentei imaginar em quais
das listas andam que não mais os encontro em nenhuma das que ainda recebo,
lamentando a possibilidade de ter me desligado de alguma que em algum momento
tenha me parecido exibição de intelectualismo de pouco proveito para o alcance
de minha compreensão sobre as reais premências e necessidades de nossa evolução
político/social, mas onde teria a vantagem de continuar aprendendo com o que
escreves.
Depois de tua mensagem anterior a esta, e talvez a primeira
que recebo por meu endereço pessoal, é que me dei conta de que estás em minha
lista de correspondentes. Esta lista se fez tão extensa que impossível memorizar
a maioria dos que a integram.
Tua mensagem anterior me deixou muito lisonjeado e pretendi
responder imediatamente, mas no atropelo das correspondências e dos
acontecimentos esta reposta foi se postergando como tantas outras igualmente
engolidas pelas mais prementes e por minha necessidade de pensar o momento que
vivemos.
Não sei definir se qualidade ou defeito, meu processo de
raciocínio não é a apenas relacionado ao escrever, é o próprio escrever. Talvez
pela condição voluntária de quase ermitão neste Sambaqui, perdi a possibilidade
de ponderar trocando ideias e percepções, pois apesar da generosidade dos
companheiros cotidianos em me ensinar o que sabem sobre suas lides, as
exigências de sobrevivência não os permite que deem muita atenção às
preocupações que me afligem sobre a constituição e evolução político/social de
nosso país.
A partir de 2005 me vi impulsionado a participar do esforço
para desmonte do projeto de promoção do impeachment do então Presidente Lula e,
utilizando a internet pra isso, passei a empregar essa forma de pensar
escrevendo. Mas anteriormente ao que foi deflagrado por Roberto Jefferson me
parecia que nossa militância não se comportava com a previsibilidade devida à
previsibilidade de um golpe a ser promovido pela direita
brasileira.
Cheguei a escrever aos poucos companheiros com que então me
correspondia alertando sobre a necessidade de se manter relações com os
movimentos de base, unificando-os em mobilizações para prévia sustentação do
governo popular. O otimismo das respostas destes companheiros, considerando
impraticáveis e inócuas novas tentativas de golpe pela direita, muito me
preocupava porque em todo o continente só temos um exemplo de ininterrupta
manutenção de governo voltado para os interesses de seu povo, e não me parece
exagero considerá-lo como um dos únicos exemplos do mundo.
Se considerarmos que nos demais países de regimes mais ou
menos baseados nas proposições marxistas a manutenção daqueles governos só foi
ou é possível através processos muitas vezes opressivos e truculentos que muitas
vezes leva a desvios do projeto político inicial, provavelmente seja mesmo o
único.
Claro que me refiro a Cuba e por mais que a direita
internacional tente denegrir aquele governo em extemporâneas memórias de
execuções inerentes a qualquer processo revolucionário de implantação de sistema
político, não têm como negar que há duas décadas se mantém por exclusiva
determinação da sociedade construída através do processo que se perpetua como
revolucionário apenas na unificação popular e sua consequente evolução humana.
No entanto, as tendências políticas populares que neste
século alcançaram o poder por vias democráticas em diversos países do
continente, denotam inequívoca determinação em se manter democraticamente como
livre opção política de seus povos. E para isso correm contra o tempo, tentando
consertar os profundos desgastes e enormes buracos produzidos por séculos de
governança sem qualquer interesse em formação de uma malha social saudável,
coesa e resistente. Além de terem de contornar os inúmeros obstáculos
implantados por legislações do passado e sobrepostos pelos que são criados pelas
representações mantidas pela pretendida inalterabilidade do sistema democrático
e um intenso bombardeio de manipulação e condicionamento de massas através dos
porta-vozes de oligarquias locais e interesses do capital internacional: a
mídia.
Em casos como o da Venezuela, a manutenção da via democrática
permitiu às representações do interesse estrangeiro pelo petróleo a promoção e
efetivação de golpe, revertida pela mobilização popular. O mesmo seria possível
no Brasil?
Difícil prever. Apesar das terríveis ocorrências ao longo da
ditadura militar a unificação da esquerda brasileira, como das de Cuba ou da
Venezuela, parece impossível. Não há entre elas qualquer proposta que
fundamentalmente as difira entre si e tampouco do governo, mas o personalismo de
suas lideranças leva a ridículos paradoxos como o de adotar os discursos da
direita quando não, inclusive entre alguns do próprio governo, a se aliar com a
direita para a consolidação de mesquinhos projetos pessoais.
A absoluta falta de consciência da esquerda brasileira de que
todas as divergências seriam conjuntamente extintas, inviabiliza um projeto de
mobilização em defesa da ideologia que todas apregoam como própria e exclusiva,
mas nenhuma se comporta consistentemente como detentora da ideologia que acusa
ao outro de não ter. Ao contrário dos macacos do exemplo, aqui são todos a falar
da falta de rabo em outro, apesar de nenhum os ter.
A despeito da significativa diferença entre o interesse
externo pela produção petrolífera venezuelana que levou ao golpe contra o
presidente Chávez, e os interesses geopolíticos e econômicos pelo Brasil na
época, em face da mobilização golpista da direita venezuelana me parecia uma
temeridade a confiança dos companheiros de que bastaria a condução dos programas
sociais em implantação naquele início de governo Lula, como garantia de que
politicamente o Brasil ingressara num caminho sem volta.
Recordando a volubilidade da tênue consciência da própria
realidade de uma sociedade que elegeu e destituiu governos por influências dos
meios de comunicações monopolizados por tão perceptíveis representantes de
interesses estrangeiros contrários aos nacionais, me era e continua sendo muito
preocupante deixarmos de dispender esforços para conformação de uma sociedade
capaz de resistir às investidas golpistas que pautaram a história do nosso
continente ao longo de todo o século passado, e neste princípio de 21 já se
manifestaram naquela frustrada tentativa contra o governo democrático de Hugo
Chávez e mais recentemente foram bem sucedidas contra os igualmente democráticos
governos de Honduras e do Paraguai.
Conta-se que em determinado momento do transcorrer da
tentativa de golpe do Mensalão, o Presidente Lula ameaçou ir às ruas e com isso
teria contido as pressões pelo impeachment. E também se comenta que o artifício
só não foi aplicado porque a direita brasileira não obteve participação popular
em intentos como o do movimento das elites reunidas no manifesto “Cansei”, uma
reedição atualizada da Marcha de Deus com a Família.
Podem-se cogitar diversas razões para a não participação do
exército como na anterior edição da convocação da classe média para realização
dos propósitos das elites que mantêm o controle político e econômico do país
desde a colonização, em parte substituídas ou acrescidas pelos que surgiram com
evolução do mercado nacional da base agrária para a industrialização implantada
pelo mesmo Getúlio ao qual se opuseram e levaram ao suicídio.
Intentos golpistas da direita brasileira são mais previsíveis
do que enredo de história de filme de Hollywood. Mas o que não se pode prever é
em qual momento o exército tornará a reagir ao comando de novos e eventuais
Juarez Távora, Melo Mourão ou Golbery do Couto e Silva.
Também se pode cogitar sobre quais motivos em 2005 a
embaixada dos Estados Unidos se eximiu de cooptar o alto oficialato do exército
brasileiro, ao contrário do que ocorreu em 1964. Só o que não se pode é esconder
de nós mesmos, como faz a direita, que o Brasil de 2013 é bem outro do que era
em 2005 e a comprovação disso está na espionagem que sofremos pela NSA, agora
denunciada.
Por certo já eram cientes dos potenciais do Pré Sal desde o
governo FHC, quando Francisco Gross prometia-lhes a Petrobrax antes do final
daquele governo, mas em 2005 os Estados Unidos estavam envolvidos na frustração
de continuidade em guerra do que Bush anunciara como ataque vitorioso. Se a
ocupação dos poços de petróleo do Iraque não foi um passeio, o efeito teatral do
bombardeio às cavernas do Afeganistão não caíram no gosto do público
internacional; além de que começava a se fazer sentir os efeitos da falência do
sistema neoliberal.
Afora esses desastres no flanco oriental, o próprio fracasso
do golpe ao Chávez tornava recomendável se evitar esse tipo de intromissão no
Brasil onde recentes resultados eleitorais demonstravam tanto a perda de
capacidade de condicionamento público pela mídia brasileira quanto o desgaste
das vozes da direita sob a batuta de FHC. E as até então consideradas lideranças
de esquerda, cooptadas inclusive de dentro do próprio partido governista, apesar
do dramático desempenho e até pelo exagero da interpretação, também não foram
convincentes ao público nacional.
Por outro lado, se a verborragia chavista era uma
metralhadora giratória impossível de ser calada, melhor abafar o ruído para
amenizar seus efeitos psicológicos através da aliança a outro governo do
continente que, apesar de identificado como esquerda, ao menos aparentava mais
moderado.
Se a essa conjunção de fatores o Mensalão gorou, não quer
dizer que no ninho da serpente não se tornaria a desovar novos projetos de
golpe. Durante todo o período da Velha República a direita promoveu sucessivos
golpes entre suas próprias facções, assim como a sucessão dos ditadores do
regime militar se deu por golpes entre facções do exército. O grotesco Costa e
Silva não era o candidato do culto Castelo Branco, como Geisel não era do Médici
e até atos de terrorismo de facções militares, ainda que vitimassem
exclusivamente a população, tinham por objetivo desestabilizar o oficial de
plantão, como no caso do Rio Centro em que, felizmente, plateia e artistas
escaparam e, por sorte, as vítimas foram os próprios golpistas e seus
terroristas. Mas o verdadeiro alvo era o Figueiredo.
Embora a população não o percebesse, a indicação de Tancredo
Neves não passou de golpe aos anseios da própria população mobilizada pelo
“Diretas Já!”. Assim como Collor de Melo foi um golpe da direita contra o José
Sarney, civil proveniente da ditadura. Mais tarde Sarney é novamente golpeado,
na candidatura de sua filha, por seus correligionários FHC e Serra que só não
golpearam o coo partidário Mário Covas por desnecessidade, mas antes de morrer
Covas sabia que teria de enfrentá-los.
Mais do que uma cultura, o golpismo é um método político
inerente à direita brasileira desde o golpe ao Dom Pedro II que instituiu a
República usando o Deodoro golpeado por seu sucessor, o conterrâneo e
companheiro de armas Floriano Peixoto, igualmente golpeado por aqueles que o
sucederam golpeando-se entre si indefinidamente. Golpe é o fazer político da
direita brasileira, hoje estimulada pela incapacidade de unificação da esquerda
que se subdivide indefinidamente por um mesmo ideal anunciado, ainda que sem
atitude ideológica concreta. Ou concretizada. Ou concretizável. Ou de concretude
que se dissolve nos ares dos anseios individuais ao poder em seus variados
níveis, inclusive àqueles à sombra da direita mais à mão ou oportunamente
acessível.
Então a permanente eminência de golpe começa onde fracassa a
mais recente tentativa. A continuidade desse moto só deixará de ser perpetua
quando a consciência das esquerdas brasileiras evoluírem para um real socialismo
que a leve a fazer algo mais além de concorrer por espaços e benefícios do
exercício do poder. Não se conduzirá pelo socialismo ao Brasil ou a pais algum
apenas pelo poder. A verdade demonstrada inclusive pela União Soviética é que
uma sociedade só poderá seguir pelo socialismo se a própria sociedade for
socializada. Cuba não sobreviveria duas décadas pós o fim do protecionismo
soviético sem intervenção dos Estados Unidos, apenas pelas barbas do Fidel.
Sobrevive apesar do bloqueio econômico que tão duramente vitimou seu povo, por
ser uma sociedade socializada.
E quem socializou o povo cubano ou o povo venezuelano não
foram Fidel ou Chávez, pois as funções dos governantes nem os possibilitaria
tempo e condições para isso, nem isso é possível de ser realizado por uma ou por
dez pessoas. Isso é trabalho para todos que apoiem um ideal, mesmo que não
concorde com o governante. Nem todos os que socializaram o povo cubano ou os que
socializam o povo venezuelano concordam com Fidel e Chávez. Há vários deles que
em entrevistas ou através do que escrevem e publicam são críticos a um e outro,
mas criteriosamente pontuais tanto na crítica quando na defesa desses
governantes e apesar de não os pouparem naquilo que os consideram errados, não
se eximem de considerá-los essenciais na direção daqueles países para a
continuidade da socialização de seus povos.
No momento não recordo o nome de nenhum desses socialistas
venezuelanos que criticam Chávez apoiando seu governo, tampouco de cubanos em
relação aos Castros, mas posso lembrar da psicóloga filha do Raul Castro que
criticando os preconceitos do tio e do pai fez com que o governo daquela ilha
instaurasse um serviço de atendimento específico a homossexuais que tem sido
considerado exemplar e revolucionário por especialistas de todo o mundo. E
quando aqui esteve, ouvi da Aleida Guevara uma duríssima crítica ao pouco
esforço na socialização das relações de gêneros entre os cubanos, sendo que o
que ela apontava como negligência do governo às mulheres de lá, é o máximo que a
maioria das brasileiras sequer sonha possível. Entendendo minha estupefação com
incentivo a sua indignação, se animou em considerações que mais me soterravam de
vergonha pela distância que estamos de compreensão do que seja uma sociedade
socializada. Não disse nada, mas mil vezes mais seguro e confortável ser uma
cubana do que ser um brasileiro ou cidadão masculino da maioria dos países do
mundo.
Assim como a direita faz para depreciá-lo, seja para
enaltecê-lo ou excomungá-lo as esquerdas brasileiras também citam frases
proferidas por Lula ao longo do seu governo. No segundo caso sempre as comparam
com outras que tenha declarado anteriormente ao seu governo, como se a situação
de governante não oferecesse qualquer aprendizado a quem foi oposição. Ou como
se ser candidato de oposição implique em plenos conhecimentos de todos os
meandros à realidade que se propõem. Aliás, cada militante da esquerda desse
país é o melhor governante que um país poderia desejar, embora nenhum consiga
sequer cogitar sobre o que aconteceria ao país se suas conjecturas fossem postas
em prática ou como fazer para praticá-las. Inclusive o que fazer sem o que
apontam como de imprescindível eliminação. Ser esquerda no Brasil é de uma
simplicidade entusiasmante: basta dividir todo o capital do país pelo povo e
depois cada brasileiro poderá estender o carnaval pelos 365 dias de todos os
anos de vida.
Estranhamente nunca ouço alguém da esquerda brasileira, que
apoie ou condene Lula, citar a frase com que ele demonstrou um sentido
inequívoco a um governo popular. Mesmo que seja para dizer que ele não cumpriu
com o que disse, não citam essa afirmação que se dita pela boca de um Abraham
Lincoln, um Mao Tsé Tung, um Kennedy, um Fidel Castro ou um Mandela, entraria
para história como máxima de norteamento à política universal: “Não faço o que
faço porque quero. Faço o que a sociedade diz que quer que eu
faça.”
A esquerda brasileira até agora não se norteou por coisa
alguma, muito menos por esta frase que cito de memória e não recordo se ao
utilizá-la Lula especificou uma “sociedade organizada”, mas se não o fez está
implícito que para demonstrar ao governante o que quer que faça, a sociedade tem
de ser organizada. E o fato é que a esquerda brasileira, incluindo a do PT, tem
demonstrado a mesma incapacidade ou desinteresse da direita em organizar a
sociedade brasileira.
Pois agora, aproveitando o ensejo das manifestações do MPL, a
direita brasileira resolveu utilizar a sociedade brasileira para pressionar o
fazer o que ela, direita, deseja que seja feito.
“Não é só os R$ 0,20” esclareceu. Claro que teria de jogar no
bojo do baú reivindicatório alguns interesses legitimamente populares, mas a
divulgação e maior promoção foram dirigidas contra o principal empecilho a
futuros projetos golpista em prol da judicialização da política brasileira, a
PEC 37. Deu dó de ver aqueles garotos e garotas tentando catar alguma explicação
para aquilo contra o que foram levados a protestar sem fazer a menor ideia do
que fosse.
Utilizados pelo projeto da direita sem dúvida, mas quem o
pior: a mãe de rua que utiliza a criança abandonada como esmoler ou a mãe
natural que a abandonou na rua? Classe média ou não, esses meninos que
protestaram inconscientes de contra o que protestavam, só foram utilizados pela
direita porque abandonados por aqueles que pela ideologia de que se dizem
dotados deveriam ensinar-lhes a promover protestos consistentes em prol de seus
próprios e reais anseios.
No Brasil, os reflexos de substituição do falido
neoliberalismo pela judicialização política encontra terreno fértil pelo
abandono da sociedade pelos idealistas de esquerda. Já há alguns anos o caminho
de judicialização política que vem sendo inseminando no mundo se faz sensível,
sobretudo aos movimentos sindicais criminalizados pelos Ministérios Públicos e
os tribunais trabalhistas. Mas o chorume cultural desse processo que entre a
primeira e a segunda guerra deu origem ao fascismo e nos Estados Unidos
radicalizou a segregação racial, escorre entre os comportamentos sociais, ainda
que não consigamos reconhecer-lhe o fedor nas declarações de agentes públicos e
políticos e nos jovens que espancam homossexuais ou nas recorrentes e bárbaras
agressões às mulheres. Tudo isso enquanto, segundo as pesquisas de opinião
pública, a grande maioria da sociedade condicionada pela mídia clama pelo
rebaixamento da idade penal.
Mas voltando à minha desesperada e emocional tentativa de
desmonte do golpe do Mensalão, naquele processo de pensar escrevendo, na
ansiedade de emissão de minha insignificante participação devo mesmo ter
distribuído muita bobagem, muita besteira resultante de uma percepção
distanciada da realidade maior dos acontecimentos. Tenho consciência disso
porque tenho consciência de meu deliberado confinamento neste Sambaqui. Mesmo
assim e apesar de ainda hoje essa emoção e ansiedade muitas vezes me levar à
distribuição de textos que sequer reviso e seguem com intragáveis erros
gramaticais e ortográficos, não consegui compartilhar do entusiasmo daqueles que
consideraram a superação da tentativa do golpe do Mensalão uma vitória da
chamada blogosfera lulista.
Apesar de reconhecer a importância dessa ação, na qual nos
incluímos, a euforia daquele momento me preocupou bastante porque reafirmaria o
equívoco em que muitos insistiram quando, no decorrer do golpe, alertava para a
necessidade de convocação de mobilização popular contra os golpistas. Então
muitos companheiros tentaram me convencer de que isto seria impossível, visto
que os tempos são outros e os espaços informáticos substituíram os das ruas, as
telas dos computadores substituíam o asfalto, os teclados aos
megafones.
Mais tarde estes mesmos se entusiasmaram com as mobilizações
da Primavera Árabe, provavelmente convencidos de abissais diferenças entre os
comportamentos de humanos muçulmanos do Oriente Médio e humanos cristãos ou não
religiosos deste nosso Ocidente.
Enquanto isso, apesar de uma década inteira de governo à
esquerda, a degradação cultural e o desconhecimento e inconsciência de sua
própria realidade pela sociedade brasileira me é cada vez mais sensível, mesmo
dessas distâncias de fim de mundo em rua sem saída onde o mar faz a curva.
Ainda assim, mesmo que um quase ermitão, graças aos
correspondentes da internet não sou inteiramente alheio ao que ocorre no Brasil
e não és o primeiro a me relatar sobre o odioso método de demarcação das
residências a serem desalojadas que nos transporta à lembrança da chegada da
comitiva de João VI quando nos portais se pichava o PR em residências escolhidas
pelos colonizadores.
Também odioso foi o desalojamento do Museu do Índio e
concordo contigo que estes problemas justificaram as manifestações dos cariocas,
como pontualmente as de outras cidades. Compartilho contigo e com os
manifestantes cariocas a aversão ao prefeito, além de não nutrir inteira
confiança no governador, mas tirante a violência evidentemente planejada da
polícia de Geraldo Alckmin, me é possível não reconhecer no gigantismo e nas
características exclusivas dessas manifestações uma orientação acima das justas
questões pontuais.
Seja em reivindicações que mais se identificam com as
repetidas campanhas pretensamente noticiosas da mídia do que com reais
preocupações populares. Seja em manifestações totalmente alheias aos interesses
do manifesto, por mais difusos fossem. Seja pela violência da repressão policial
também em outros estados que não São Paulo. Seja pela violência de grupos
nitidamente infiltrados ou pela ação organizada de vândalos. E, sobretudo, pela
coibição aos militantes dos partidos de esquerda e a convocação e organização
dirigida por políticos e autoridades policiais de direita, impossível não
reconhecer nestes manifestos sequestrados do MPL uma evidente tentativa de
golpe.
Mais uma. Será a última?
Alguns dos mais renhidos e aguerridos manifestantes já
responderam: “É só o começo!” E não eram os do MPL.
A ameaça é a mesma utilizada pelo PCC quando sequestraram São
Paulo ou quando iniciaram a queima dos ônibus aqui em Florianópolis: “É só o
começo!”. Exatamente essas foram as palavras do PCC no início do sequestro de
São Paulo no governo anterior de Geraldo Alckmin cuja recondução ao cargo
coincide com o recrudescimento da violência no estado de São Paulo a níveis
internacionalmente considerados insuportáveis.
É só o começo ou a continuidade dos métodos típicos da
direita brasileira?
A Presidenta Dilma está respondendo a esse começo e sinto-me
confortavelmente representado por uma Presidenta que dá as respostas de acordo
com o que a sociedade diz o que quer que seja feito, ainda que nem tudo tenha
saído do agrado dos que perderam a mão do controle do movimento que acabou
resultando no que não desejavam.
Na verdade, Fernando, apesar das debilidades de nossa
esquerda, se as possibilidades de golpe dependessem exclusivamente dessa direita
que aí está eu não teria preocupação alguma, pois compensando a desorientação da
esquerda que temos, a direita brasileira é extremamente estúpida. Tanto que a
cada tentativa acabam dando golpe nas próprias manobras e maneirismos.
Tá certo que compraram o Joaquim Barbosa com emprego pro
filho na Globo e sabe-se lá o que mais, mas a condenação dos arrolados pelo
Mensalão fictício do Roberto Jefferson continua sendo uma aberração judicial
reconhecida pelos próprios juízes na desfaçatez de afirmarem condenar sem
provas. Mas acabaram desvelando um Mensalão de fato e recheado de provas, com
personagens vivos, reais e em carne e osso. Ninguém morreu de véspera no enredo
do real Mensalão Tucano.
Agora, preocupadíssimos com a PEC 37, acabaram tendo de sair
de cima de um projeto muito mais contundente sobre o qual se sentaram durante
mais de 2 anos.
A verdade é mesmo essa, Fernando, nem a direita nem a mídia
brasileira são tão preocupantes quanto nossas esquerdas e concordo com a análise
do Mélenchon que agradeço por tê-la enviado. De fato, o atalho usado pelos
sequestradores da manifestação do MPL acabou levando-a a um rumo bem mais
progressista do que a suspensão da tarifa de transporte. E também concordo que
não devamos nos deixar paranoicamente paralisados de medo pelos dedos dos
Estados Unidos enfiados nessa nova tentativa de promoção de golpe.
Mas, novamente lembrando que o Brasil de hoje já é bem outro
do de 2005 quando não se encontrou digitais estadunidenses na impostura do
Mensalão, não me sinto tão confiante quanto o Mélenchon no que se refere aos
Estados Unidos serem ou não decisivos numa próxima tentativa de golpe.
Será que agora, depois das revelações do Snowden sobre as
espionagens da NSA, essa confiança do Mélenchon ainda é a mesma?
Sei não... Vivesse entre uma sociedade como a cubana não me
preocuparia tanto, mas isso de ser mais um esquerda a se considerar mais
esquerda do que todos os outros, sem tomar qualquer atitude que melhor promova a
socialização brasileira, limitando-me a distribuir textos pela internet como
faço; realmente me deixa inseguro quanto ao nosso futuro de grande produtor de
petróleo e como país fronteiriço a todos os de governo de esquerda do
continente, a exceção do Equador.
Aproveitando o ardor de minhas orelhas, te repasso o puxão do
Valter Pomar aí reproduzido. É outro que fala demais como eu, mas esse vale a
pena ler:
Um
novo tempo, apesar dos perigos
1.As
grandes mobilizações ocorridas no Brasil, desde 13 de junho de 2013, constituem
motivo de comemoração e otimismo. O país, nosso governo e nosso Partido
necessitavam deste chacoalhão, que abre a possibilidade de avançarmos, e
avançarmos mais rápido, no processo de reformas sociais e políticas. Mas para
isto é preciso fazer uma detida reflexão sobre os acontecimentos, para a qual
apresentamos a contribuição a seguir.
2.Os
acontecimentos das últimas semanas não constituem um raio em céu azul, ao menos
para os que vinham acompanhando a mudança nas condições do país, desde o início
do governo Dilma. Vários setores do Partido, inclusive a Articulação de
Esquerda, já apontavam (http://pagina13.org.br/2013/04/manifesto-a-esperanca-e-vermelha/)
para os limites de nossa estratégia, as contradições crescentes de nossa
política, as mudanças sociológicas e geracionais do país, a alteração na postura
do grande capital, a ofensiva ideológica e política da direita partidária e
midiática, o distanciamento das bases sociais e eleitorais e, principalmente,
para o fato de que a política econômica vem provocando um atendimento limitado
às necessidades e demandas das massas populares. Não apenas a AE e setores da
esquerda petista, mas o próprio Diretório Nacional do PT já apontara, na
convocatória do V Congresso do Partido (http://www.jptrn.com.br/2013/05/convocatoria-para-o-v-congresso.html),
a necessidade de reformas estruturais mais profundas no país, inclusive no
âmbito da comunicação, educação e cultura. Mas mesmo quando esta crítica
comparecia nos discursos, não era a interpretação nem a postura predominantes na
prática. Nesse sentido, é necessário e pedagógico recordar alguns fatos,
ocorridos antes de 13 de junho de 2013.
3.A
imprensa atribuiu a um afamado marqueteiro –categoria cuja nefasta influência
política deve ser repensada— a opinião de que as pesquisas apontavam para uma
reeleição de Dilma já no primeiro turno. Avaliação equivocada que havia sido
cometida em 2010, quase resultando em danos irreparáveis.
4.Nas
atividades comemorativas dos dez anos de governos Lula e Dilma, o reconhecimento
dos erros, insuficiências e contradições era muitas vezes soterrado por um
discurso de auto-propaganda, que também pode ser encontrado em publicações
recentes acerca do tema. Não temos dúvida de que hoje estamos melhor do que
estávamos na era FHC, e de que estamos melhor do que estaríamos sob Serra e
Alckmin. Mas estaríamos ainda melhor se tivéssemos aplicado o conjunto do
programa do PT, sendo necessário reconhecer as limitações do que foi feito e o
quanto ainda resta por fazer.
5.Era
frequente, entre amplos setores do Partido, uma postura arrogante que minimizava
a força política e ideológica de nossos inimigos, assim como as decorrências
negativas do tipo de governabilidade adotada, entre as quais a influência do do
PMDB e a presença crescente de fundamentalistas de direita em partidos da base
do governo, sendo Marcos Feliciano seu símbolo mais vistoso, compondo um
Congresso Nacional que tem derrotado a imensa maioria das propostas
progressistas. Virou hábito dizer que a oposição de direita “não tinha
programa”, “não tinha proposta”, “estava dividida”, “não conseguia influenciar a
opinião pública, só a opinião publicada”, dependia “apenas” do PIG etc. Cegueira
política e preguiça intelectual, incapaz de perceber os desdobramentos do que
vem ocorrendo no Brasil há anos: uma brutal ofensiva ideológica do
conservadorismo, que assume ademais novas formas e conteúdos, por exemplo
através da agitação e propaganda nas novas e velhas mídias. Ofensiva contra a
qual o governo e o Partido não ofereceram devida resistência. Pelo contrário: na
Comunicação, na Casa Civil e em outros ministérios, brotam frequentes sinais de
apoio prático e retórico às teses de direita.
6.Finalmente
e mais importante, tornou-se frequente confundir a fotografia com o filme. A
fotografia dos índices de pesquisa era favorável. Mas o filme mostrava uma
realidade em movimento: uma mudança na postura do grande capital em relação ao
nosso governo; a radicalização política e ideológica de setores médios contra as
posições de esquerda; a insatisfação crescente de setores da classe trabalhadora
tradicional; e uma ambiguidade no apoio da "nova classe trabalhadora". Mostrava,
também, grandes novidades geracionais: a mais alta proporção de jovens e jovens
trabalhadores no conjunto da população, com acesso a empregos precários e mal
remunerados, dividindo seu tempo entre trabalho, estudo e transporte, o que
ajuda a entender porque a qualidade do transporte e o valor das tarifas são
temas tão sensíveis.
7.Estes
e outros elementos eram completamente perceptíveis antes do 13 de junho de 2013.
Tomados isoladamente ou de conjunto, as reuniões das direções partidárias, de
nossas bancadas, das nossas lideranças sociais e intelectuais apontavam para
tais problemas. Mas o Partido como um todo, e o governo em especial, foram
incapazes de sintetizar isto numa orientação alternativa. O que reforça algo que
todos sabemos: é preciso mudar a dinâmica partidária, bem como a relação entre
partido e governo. E sem cair na tentação de personificar os problemas, pois não
podemos desconsiderar os equívocos coletivos, alguns dos quais se acumulam desde
1995, outros desde 2003.
8.A
partir de 13 de junho de 2013, a quantidade converteu-se em qualidade, num
processo de mobilização social que devemos analisar com o máximo de atenção.
Cabe ao Partido, e também a nós, reunir o conjunto de informações e
interpretações acerca do processo e elaborar uma síntese capaz de nos orientar
melhor na luta política. De imediato, algumas variáveis já podem ser
apontadas.
9.Em
primeiro lugar, é preciso atentar para a heterogeneidade do processo. Não apenas
a existência de múltiplos movimentos, setores sociais e políticos envolvidos,
disputando e sendo disputados. Mas também a existência de etapas distintas no
processo, cada qual com um sentido e hegemonia distintas. Está claro, por
exemplo, que o movimento começou em torno da luta contra as tarifas do
transporte urbano; cresceu como movimento de solidariedade contra a repressão
policial; depois entrou numa terceira fase, onde a direita passou a disputar com
força a condução do movimento; houve então uma reação do governo e das
esquerdas, em torno principalmente da proposta de Plebiscito; nos próximos dias,
estão convocadas várias mobilizações, desde o locaute convocado por setores da
direita para o dia 1/7, até a mobilização das centrais sindicais nos dias 4
e 11/7. É fundamental, portanto, fazer análise concreta da situação
concreta.
10.Em
segundo lugar, é importante destacar a predominância da juventude. Cabe analisar
melhor o perfil deste setor social que foi às ruas. E atentar para o fato de que
a juventude, especialmente nas periferias, é alvo de uma pauta predominantemente
negativa: violência do Estado, toque de recolher, redução da maioridade penal,
com 30 mil jovens negros morrendo todo ano. Numa primeira aproximação, podemos
dizer que, ao menos numa primeira etapa, foi às ruas uma juventude trabalhadora
ou filha de trabalhadores, com idade média até 25 anos e formação predominante
universitária, exatamente o setor social e geracional que nossas próprias
pesquisas e análises indicavam estar ganhando distância frente ao PT. Aliás,
chama a atenção que alguns que antes comemoravam a “entrada de milhões na classe
média”, agora criticam as manifestações por estarem “compostas predominantemente
por gente de classe média”: tanto a comemoração anterior quanto a ojeriza
posterior incidem em erros, sociológicos e políticos (http://www.pt.org.br/noticias/view/artigo_marilena_e_a_turma_do_farol_por_valter_pomar).
A verdade é que a intensa mobilização juvenil, de uma geração que nasceu depois
da campanha das Diretas Já, quebrou dois mitos: o de que a juventude seria
naturalmente de esquerda e progressista; e de que seria uma juventude alienada e
desinteressada da política.
11.Em
terceiro lugar, é necessário reconhecer o sentido em geral progressista das
demandas e do processo (http://pagina13.org.br/2013/06/que-as-manifestacoes-nao-sejam-passageiras/).
Ampliação dos direitos sociais e mudança no sistema político do país são
bandeiras do PT, da esquerda, dos setores progressistas do Brasil. Tarifa zero,
como educação e saúde públicas, não são plataforma da direita, do grande capital
e dos setores conservadores, ainda que estes setores busquem apropriar-se
oportunisticamente destas bandeiras, para tentar dirigir um movimento cujo
conteúdo é no limite contraditório com seus interesses de classe. Como já
apontaram muitos, o sentido das ruas está em contradição com o desejo dos
mercados.
12.Em
quarto lugar, é fundamental perceber que se trata de um movimento originalmente
espontâneo. É curioso como dirigentes importantes da esquerda, oriundos eles
mesmos de uma situação semelhante no final dos anos 1970 (“quanto novos
personagens entram em cena”), tenham hoje dificuldade de reconhecer ou de
aceitar que outros possam fazer o mesmo. Freud explica. Claro que em todo
movimento espontâneo há incoerências e confusão, elementos organizados, disputa
política, interferência da direita, momentos de fluxo e refluxo, desfechos
incertos. Mas exatamente isto é um movimento espontâneo: a eclosão súbita de
centenas de milhares de pessoas na rua, pessoas que passam a querer ter ação
política, as vezes superando e atropelando até mesmo as ações e forças sociais
organizadas, que por exemplo estiveram presentes desde o início no Movimento
Passe Livre.
13.Em
quinto lugar, é decisivo entender que sem um forte deslocamento da correlação de
forças, seríamos derrotados, ou na eleição, ou na condução do governo. Derrota
que em certa medida já vinha se dando, pois apesar da batalha dos juros, o
governo não estava conseguindo manter o ritmo das mudanças, fazendo cada vez
mais concessões ao grande capital e a setores da direita. E, graças à eclosão
popular ocorrida desde 13 de junho, abriu-se a possibilidade de deslocar a
correlação de forças para a esquerda.
14.Em
sexto lugar, é prudente atentar que o desfecho está em aberto. O consórcio
mídia-partidos de direita está disputando a consciência popular, as pautas da
mobilização, o sentido geral do movimento. Querem converter um movimento de
pressão por mais políticas públicas e mais democracia política, num movimento
contra o PT e contra o governo. Ainda que com propósitos distintos, setores da
oposição de esquerda têm o mesmo objetivo, acreditando que é possível
ultrapassar o PT pela esquerda, embora os acontecimentos tenham demonstrado de
novo que uma derrota do PT abriria caminho para a derrota de toda a esquerda.
Neste sentido, saudamos e nos empenhamos nas diversas iniciativas de unidade
democrática anti-fascista das diferentes forças da esquerda político-social. E
alertamos para o fato de que setores da oposição de direita estão apostando na
desestabilização da economia, inclusive recorrendo a locautes ("greve"
articulada por empresários).
15.Todas
estas variáveis apontam qual deve ser nosso caminho: disputar os rumos do
processo, não contra ele, mas apoiando-se no ambiente de mobilização, para
realizar mais mudanças sociais e políticas no Brasil, aprofundando o curso
iniciado em 2003. Cabendo ter claro que disputar os rumos do processo não é
igual a “disputar os movimentos sociais” que conhecemos e com os quais estamos
habituados. E tendo claro, também, que o ambiente político no Brasil mudou: a
direita brasileira resolveu adotar uma tática de desestabilização semelhante a
adotada pela direita venezuelana, articulando mídia e oposição partidária, com
disputa de rua. A tentativa de realizar uma greve geral via facebook, na verdade
um locaute empresarial disfarçado, é outro exemplo disto.
16.A
rigor, isto tampouco constitui novidade absoluta. No Chile de Allende, na já
citada Venezuela, na Bolívia e noutros países, a direita também busca
legitimar-se nas ruas. No Brasil dos anos 1960, a direita ocupou as ruas. E, nos
últimos anos, a direita brasileira vinha ensaiando novamente esta tática, seja
usando igrejas conservadoras, seja estimulando movimentos como o “Cansei”. Há
pouco, tivemos as ondas de boato sobre o "apagão", a "inflação" e o "fim da
bolsa família". Agora, tentam cavalgar um movimento social espontâneo. Utilizam
para isto técnicas e tecnologias adotadas em outros países do mundo, mas também
procedimentos tradicionais de ultra-direita, entre os quais a infiltração
policial, mobilização de criminosos e lumpens, tropas de choque fascistas,
preconceito religioso. Mas estas técnicas operam no movimento, não são
responsáveis pela sua eclosão.
17.Também
aqui, cabe a nós do PT fazer uma autocrítica. Nos anos 1980 e 1990, o petismo
era o principal veículo da insatisfação com os problemas políticos e sociais
brasileiros. Eram os tempos em que Lula fazia referência aos "300 picaretas" que
dominavam o Congresso Nacional. A medida que fomos nos tornando parte da
institucionalidade, reduzimos progressivamente aquela dimensão fundamental de
nossa atividade. E, como já dissemos em 1993 no Manifesto A Hora da Verdade (http://pagina13.org.br/apresentacao/quem-somos/), o em si
positivo crescimento institucional foi acompanhado da domesticação do Partido,
com a adesão de crescentes setores do petismo à norteamericanização da política
(dinheiro, mídia, marketing eleitoral). A crise de 2005 deve ser vista neste
contexto, e nossas dificuldades em equacionar o tema ajudou a direita a ganhar
amplos setores da população, para a tese segundo a qual o PT seria um partido
“tão corrupto quanto os demais”. Para piorar, a domesticação e
institucionalização do petismo foi acompanhada pela burocratização e
esvaziamento não apenas do Partido, mas também de muitas organizações oriundas
dos movimentos sociais. Abriu-se, especialmente na juventude, um vácuo que
tampouco foi ocupado pela esquerda não-petista. É neste espaço que os diferentes
setores da oposição de direita buscam operar.
18.Ou
recuperamos nossa capacidade de vocalizar a indignação “com tudo que está aí”,
abandonando a incorreta ideia de que ser governo nos impediria de tomar esta
atitude, ou no médio prazo poderemos ser varridos. Isto que é chamado de
sentimento "antipolítico", deve servir de base para a defesa de outro tipo de
política, portanto contra a política e os políticos conservadores, tradicionais,
de direita. O sentimento expresso na frase "não me representa", deve levar a
esquerda política e social a abrir nossas organizações à nova militância surgida
neste processo; e adotar uma nova dinâmica de funcionamento, vinculada às bases
sociais, presentes no cotidiano do povo, participando do debate cultural e
ideológico, recuperando o sentimento crítico e a radicalidade
programática.
19.Fazer
isto implica, também, em combater os sinais de preconceito geracional presentes
em algumas análises feitas, por setores da esquerda, acerca da mobilização
iniciada dia 13 de junho.
20.Há
muitas experiências históricas mostrando o que acontece com uma esquerda que
pretende viver de glórias passadas. Lembramos que aquilo que constitui
“conquista” para uma geração, é “parte da paisagem” para as gerações seguintes.
E será assim, especialmente quando as gerações anteriores se burocratizam e, ao
mesmo tempo, se demonstram incapazes de garantir comunicação de massas, educação
pública e formação político-ideológica para as novas gerações.
21.Grande
parte dos que foram às ruas a partir de 13 de junho são produto do país que nós
ajudamos a construir. Que as manifestações tenham sido por mais direitos, e não
contra o corte deles, nem por salários e empregos, é um sinal disto. Mas cabe
lembrar: este é um país profundamente desigual e contraditório, em que o
neoliberalismo continua ideológica e economicamente hegemônico, ao passo que a
esquerda parece ser politicamente hegemônica. Esta contradição, quase um
paradoxo, está na base de grande parte de nossos problemas, e a política de
coalizão com a centro-direita adotada pelo Partido amplia a dificuldade, pois
parece aos olhos da juventude e de outros setores que somos apenas e tão somente
parte integrante do sistema. Duas fotografias simbolizam os equívocos
decorrentes da indiferenciação: a imagem de Fernando Haddad com Paulo Maluf,
durante a campanha eleitoral de 2012;e a fotografia do prefeito com o governador
Geraldo Alckmin, no anúncio da redução das tarifas.
22.A
análise de que foi às ruas a “geração facebook”, reforçada pelas
palavras-de-ordem múltiplas ao estilo dos posts dos murais do face, tem um pouco
de verdade. Mas é bom lembrar que as organizações tradicionais da esquerda
também tem apresentado pautas reivindicatórias pulverizadas. Por outro lado, não
devemos superestimar o papel das redes: sem o impacto da grande mídia
tradicional, especialmente das televisões, as mobilizações não teriam a mesma
força. Seja como for, é ótimo que os jovens tenham saído às ruas, superando as
limitações inclusive físicas das redes sociais virtuais. Este é um processo
pedagógico, para eles e para todos, para os que foram às ruas e para os que não
foram. Além de estimular certa esquerda acomodada a movimentar-se, nem que seja
por auto-defesa; além de proporcionar uma reflexão muito útil sobre os riscos de
certa retórica nacionalista e de certa crítica rasa aos partidos, ambas atitudes
presentes em setores da própria esquerda organizada.
23.A
pedagogia do processo inclui aprender a neutralizar o vandalismo lumpen e
combater a presença do crime organizado. É preciso, também, aprender a lidar
com a atitude de grupos radicalizados como os anarcopunks. Ao mesmo tempo, é
crucial impedir que o movimento seja capturado pela direita. Por isto, é
importante identificar e derrotar os setores neofascistas, skinheads e grupos
paramilitares de direita e, principalmente, impedir que o movimento seja
capturado pela pauta da direita. Sem incorrer no erro e na pretensão de tutelar
o movimento, para atingir estes objetivos, cumprem papel fundamental as
organizações tradicionais da classe trabalhadora, o papel da velha guarda, da
esquerda organizada, da militância com experiência em lutas anteriores. Sobre
isto, com todos os cuidados que a situação exige, nossa posição é clara: as ruas
são de todos e delas não seremos expulsos pelos herdeiros dos galinhas
verdes.
24.Tampouco
aceitamos a criminalização dos movimentos sociais e a violenta repressão
desencadeada pela Polícia Militar, sob ordem de governos tucanos e de direita. E
alertamos que algumas atitudes posteriores da Polícia --como a de adotar uma
atitude "passiva" e de "reação tardia" frente ao vandalismo-- parecem estar a
serviço de criar um clima de medo e desgoverno, para justificar e legitimar o
posterior chamamento às "forças da ordem".
25.É
bom dizer que a geração que foi às ruas na primeira etapa do movimento,
basicamente gente com sensibilidade de esquerda, foi surpreendida pela atitude
de algumas autoridades filiadas ao PT. Estas atitudes desencontradas
contribuíram muito para confundir, aos olhos de setores da população, as nossas
posições com as posições do tucanato. Imaginemos: qual teria sido o curso dos
acontecimentos, caso Fernando Haddad tivesse, desde o primeiro dia, suspendido o
aumento das passagens na cidade de São Paulo? Ou caso o ministro Cardozo tivesse
criticado a violência policial desde o primeiro dia? Ou ainda se o conjunto do
PT tivesse reconhecido que a tarifa zero obedece a mesma inspiração da saúde e
da educação públicas, a saber, diferentes maneiras de garantir um direito
social? Neste sentido, saudamos a atitude legitimamente petista de militantes,
instâncias, parlamentares e autoridades executivas ligadas ao PT, que souberam
compreender o recado das ruas e com elas interagiram
adequadamente.
26.Entretanto,
o conjunto dos acontecimentos de Junho confirmou que uma parte da esquerda
brasileira converteu-se à tecnocracia, tratando o povo como “paciente”. Paciente
no sentido de ser “objeto” e não sujeito dos processos. E “paciente” no sentido
de ter “paciência”.
27.Para
os que adotam esta postura tecnocrática, é muito difícil compreender o papel que
a luta social pode jogar na transformação social. As condições históricas
levaram o setor majoritário da esquerda brasileira, especialmente o PT, a lutar
por ser governo, nos marcos da ordem capitalista e de um Estado conservador.
Exatamente por isto, esta esquerda não pode diluir-se nas instituições e
tornar-se defensora do status quo; ao contrário, deve preservar sua vocação
anti-sistêmica, democrático-popular e socialista, para fazer de sua presença no
Estado a contra-mola que resiste, altera e transforma.
28.No
caso concreto, as mobilizações em curso podem nos ajudar a defender a ampliação
dos direitos sociais, contra a ortodoxia fiscal. Ajudar a fazer a reforma
política, contra o conservadorismo do atual parlamento brasileiro. Ajudar a
colocar as reformas estruturais na pauta política do país. Aliás, um dos saldos
deste processo é nos lembrar, a todos, que a correlação de forças e a agenda
política do país podem ser alteradas, e que a luta de massas tem esta
capacidade.
29.Como
já se convencionou dizer, é hora de fazer do limão, limonada. Partir do quadro
atual, para aprofundar as mudanças e fazer a reforma política. Aliás, é bom
reafirmar: sem reforma política e democratização da comunicação, não terá futuro
a estratégia defendida pelo PT. Posto de outra maneira, não há como prosseguir
mudando o país, sem alterar as instituições estatais brasileiras. E não há como
fazer esta alteração apenas de dentro para fora: é preciso que a pressão social
entre em cena. Infelizmente, apesar dos esforços das organizações populares, a
pressão recente não surgiu por nossa iniciativa; mas felizmente surgiu. Por
isto, consideramos que foi absolutamente correto reconhecer a legitimidade das
mobilizações e de suas demandas, assim como apontar o Plebiscito e a
Constituinte como caminhos para tradução institucional da pressão social. Mas
também por isso, consideramos essencial colocar em movimento a classe
trabalhadora: é isto e a ação articulada de nossas organizações que pode
derrotar a movimentação da direita.
30.Claro
que a direita repudia a Constituinte e o Plebiscito. Confirmando o divórcio
entre capitalismo e democracia, temem que a pressão das ruas produza uma reforma
política que lhes tire poder. A isso respondemos: todo o poder ao povo, viva a
soberania popular e a democracia. Claro, também, que a direita pretende
direcionar a insatisfação social em direção aos partidos de esquerda,
especialmente ao PT. A direita pode fazê-lo, pois os partidos são para ela parte
totalmente secundária de seus aparatos de poder (entre os quais destacam-se o
oligopólio da mídia, mas também suas casamatas incrustadas dentro do aparato do
Estado). Nossa resposta deve ser defender uma política e partidos de novo tipo.
Ou seja: não os partidos em geral, não a política em geral, mas a política e os
partidos vinculados aos interesses da maioria do povo. Claro, ainda, que a
direita busca manipular o movimento contra o governo Dilma. A isto respondemos
fazendo a defesa e fortalecendo nosso governo, a começar pela presidenta Dilma,
que nesta crise mostrou capacidade de reação, liderança e faro
político.
31.Da
mesma forma, devemos defender e reafirmar nosso passado e os êxitos de nossos
governos, defender nossa ação presente, mas reconhecendo as contradições,
equívocos e debilidades. Mas devemos sobretudo dar ênfase ao futuro, ao Brasil
que queremos. E apontar com clareza qual a base de nossas dificuldades: o
capital financeiro, as transnacionais, o agronegócio, o latifúndio tradicional,
o oligopólio da mídia, o controle de setores privados sobre largos setores do
aparato de Estado, a mercantilização da política. Motivo pelo qual é mais atual
que nunca a pauta das grandes reformas estruturais, como as reformas tributária,
agrária e urbana, a democratização da mídia e da política, a ampliação das
políticas públicas e do papel do Estado.
32.Na
mesma linha, cabe-nos rearticular nosso bloco político-social: governos,
movimentos, partidos, intelectualidade, bases sociais e eleitorais. O Partido
dos Trabalhadores, em especial, deve repactuar suas relações com os movimentos
sociais e com as bases populares. Isto inclui, por exemplo, realizar plenárias –
setoriais, municipais, estaduais e nacionais – dos militantes petistas que atuam
nos movimentos sociais. E reorganizar, em novas bases, algo como foi o “fórum
nacional de lutas”, articulando partidos e movimentos sociais do campo popular.
Mas inclui principalmente tratar de outra forma temas variados, que estão na
origem de conflitos no seio das forças populares: as demandas da CUT, os leilões
do petróleo, a reforma agrária, o fator previdenciário, o respeito aos
indígenas, a defesa das causas LGBT, as politicas de gênero, os gastos da Copa,
a política de transporte urbano, o controle do ministério das Cidades pela
direita, alianças intragáveis etc.
33.Cabe,
ainda, fazer o Partido funcionar como Partido e ser capaz de reagir na
velocidade que a luta política está impondo. Nesta crise, como em tantas outras,
confirmou-se que atuamos muitas vezes como “partido de retaguarda”, que sabe
operar predominantemente nos anos pares.
34.Como
parte da disputa das ruas, o PT deve participar organizadamente das atividades
convocadas pela Central Única dos Trabalhadores dia 4 de julho; e também das
atividades convocadas pelo conjunto das centrais, no dia 11 de julho. Nossa
ênfase deve ser na defesa da pauta da CUT: contra o PL 4330, da “terceirização”
que retira direitos dos trabalhadores brasileiros e precariza ainda mais as
relações de trabalho no Brasil; que as reduções de tarifa do transporte não
sejam acompanhadas de qualquer corte dos gastos sociais; 10% do orçamento da
União para a saúde pública; 10% do PIB para a educação pública, “verbas públicas
só para o setor público”; fim do fator previdenciário; Redução da Jornada de
Trabalho para 40 horas sem redução de salários; Reforma Agrária; suspensão dos
Leilões de Petróleo. Também defenderemos o Plebiscito proposto pela presidenta
Dilma, a reforma política, a democratização da comunicação e a Assembleia
Constituinte.
35.A
disputa das ruas começa já nas telas de TV. O governo brasileiro está convocado
a alterar imediatamente sua política de comunicação. O atual ministro das
Comunicações, Paulo Bernardo, foi capaz de imputar à militância petista uma
posição que não é a nossa (a censura), além de nos atacar covardemente nas
páginas da pior revista do país, não está vocacionado para cumprir esta tarefa.
O ministério deve ser encabeçado por alguém comprometido com a democratização
da comunicação social.
36.A
disputa das ruas começa, também, alterando a política de comunicação do Partido.
Constituir uma redação de conteúdos capaz de alimentar nossos boletins, páginas
eletrônicas, programas de rádio, entrevistas e discursos em todo o país. E
reconstruir nossas redes sociais, principalmente apoiando a atuação organizada
de nossa militância nessa frente de luta política e ideológica.
37.O
centro da tática é, neste momento, disputar e vencer o plebiscito. O que exigirá
uma forte aliança política e social, que já está se conformando, entre todos os
favoráveis à reforma. Ao Partido caberá de imediato, entre outras tarefas, a de
contribuir no essencial debate sobre quais serão as perguntas feitas à
população. Proposto para 7 de setembro, o plebiscito pode criar as condições
institucionais necessárias não apenas para reeleger Dilma, mas para fazê-lo de
forma a que o segundo mandato seja superior ao primeiro.
38.Para
vencer o plebiscito, é fundamental que haja condições democráticas, o que começa
por definir regras claras, horário eleitoral de rádio e TV, limites ao
financiamento das diferentes posições, democracia nos meios de
comunicação.
39.Também
é fundamental a definição de quais temas devem ser objeto de debate e votação,
no Plebiscito. De saída é importante que o conteúdo e a redação das perguntas
dialogue com o sentimento popular, de negação da atual maneira de fazer
política. Por isto, tão importante quanto as alternativas de sistema eleitoral
(voto distrital, em lista ou distrital misto) e a fidelidade partidária, são
temas como a introdução de instrumentos de democracia direta, extirpar a fonte
de corrupção que é o financiamento empresarial das campanhas eleitorais,
garantir a proporcionalidade na eleição de parlamentares, a paridade de gênero
na composição das bancadas, o fim do Senado com a introdução do unicameralismo
etc.
40.E,
com destaque, a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte, bandeira
correta, aprovada e reafirmada pelo Partido, a única compatível com a
necessidade de alterar de conjunto e democraticamente a institucionalidade
brasileira. A esse respeito, o governo deveria ter mantido a proposta combinada
de Plebiscito e Constituinte "específica", para fazer a reforma
política.
41.É
nestes marcos de intensa luta política e social que ocorrerá o processo de
eleição das direções partidárias, o chamado PED. Trata-se de uma coincidência
feliz, pois permitirá à militância construir, através do debate, uma nova
estratégia para um novo período, de maiores conflitos políticos e sociais, cuja
solução positiva exige a realização de reformas estruturais. Um cenário
adequado, também, para que o Partido reveja de alto a baixo sua organização,
reconstruindo suas instâncias e organismos de base, revendo seus métodos de
funcionamento e ação, e principalmente adotando uma nova estratégia, elegendo
uma direção que seja capaz não apenas de reconhecer os novos tempos, mas também
– e principalmente – capaz de agir em conformidade com isto.
41.É
nestes marcos de intensa luta política e social que ocorrerá o processo de
eleição das direções partidárias, o chamado PED. Trata-se de uma coincidência
feliz, pois permitirá à militância construir, através do debate, uma nova
estratégia para um novo período, de maiores conflitos políticos e sociais, cuja
solução positiva exige a realização de reformas estruturais. Um cenário
adequado, também, para que o Partido reveja de alto a baixo sua organização,
reconstruindo suas instâncias e organismos de base, revendo seus métodos de
funcionamento e ação, e principalmente adotando uma nova estratégia, elegendo
uma direção que seja capaz não apenas de reconhecer os novos tempos, mas também
– e principalmente – capaz de agir em conformidade com isto.
42.Vivemos
novos tempos, apesar dos perigos. As próximas semanas podem confirmar o
potencial mudancista do processo, ou podem resultar numa reversão conservadora,
como é o sonho daqueles que comemoram os resultados de recentes pesquisas de
opinião. Cabe a cada um de nós, militantes de esquerda, sustentar as bandeiras
vermelhas da esperança e do socialismo.
A
direção nacional da Articulação de Esquerda, tendência do Partido dos
Trabalhadores
30
de junho de 2013
Recebido por e-mail de Beatrice.lista@elo.com.br
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