Quem é o Doutor Escuta
Por Amaury Ribeiro Jr., em A Privataria Tucana (capítulo 11), reprodução autorizada pela Geração Editorial |
Derrotado na disputa à
Presidência da República, José Serra gastou boa parte da campanha
eleitoral de 2010 resmungando contra “espiões” que estariam
bisbilhotando a vida de sua filha Verônica e de ilustríssimas figuras de
seu partido. Sua aliada, a mídia encarregou-se de reverberar seus
protestos, turbinando-os com altos decibéis. A arapongagem teria raiz no
“núcleo de inteligência” montado por petistas, cuja existência nunca
foi provada. Serra sempre refutou, também com veemência, adotar práticas
semelhantes às que supunha ver praticadas por seus adversários.
Mas
as relações de Serra com o submundo da espionagem foram levantadas pelo
próprio autor. Faltava, no entanto, prová-las. Este capítulo traz essa
prova cabal, os documentos inéditos que comprovam definitivamente o que
todo mundo sempre soube. Serra costuma recorrer ao submundo da
espionagem para vasculhar a vida de seus adversários políticos.
A
papelada cedida ao autor pelo jornalista Gilberto Nascimento evidencia
que o então governador paulista contratou, sem licitação, por meio da
Companhia de Processamento de Dados do Estado de São Paulo (Prodesp), a
empresa Fence Consultoria Empresarial. A Fence é propriedade do
ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI), o legendário coronel
reformado do Exército Ênio Gomes Fontelle, 73 anos, conhecido na
comunidade de informações como “Doutor Escuta”.
A
empresa do “Doutor Escuta” foi contratada por R$ 858 mil por ano “mais
extras emergenciais” — pagos pelo contribuinte — no dia 10 de julho de
2008. Vale lembrar que nessa época a vida particular do ex-governador de
Minas Gerais Aécio Neves estava sendo espreitada por arapongas no Rio
de Janeiro, onde a Fence está sediada. Talvez isso explique por que a
Prodesp tenha invocado “inelegibilidade” para contratar a empresa do
araponga sem licitação.
Em outras
palavras, a Prodesp afirma que o “Doutor Escuta” não tinha concorrentes
à altura para realizar o serviço. Conforme o contrato, entre outros
serviços, a Fence é responsável pela “detecção de incursões eletrônicas
nas instalações da Prodesp ou em outras localizações de interesse da
empresa”. Isto significa que a empresa tem como acessar os dados
pessoais de funcionários públicos, de juízes e até de parlamentares por
uma simples razão: a Prodesp é a responsável não só pela folha de
pagamento, mas também por todos os serviços de informação do Estado. Ou
seja, o contrato concede à firma do “Doutor Escuta” o direito de invadir
esses dados na hora que bem entender. Até o fechamento deste livro
(final de junho) o governador Geraldo Alckmin (PSDB) mantinha o contrato
com a empresa de Fontelle.
E o
que o delegado federal e ex-deputado, também federal, Marcelo Itagiba,
tem a ver com isso? A resposta quem fornece é o próprio currículo do
coronel. O “Doutor Escuta” jacta-se de haver integrado o seleto grupo de
arapongas que Serra, quando era ministro da Saúde de FHC, montou na
Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).
Sob
a batuta de Itagiba, além do coronel Fontelle, estavam ainda mais dois
personagens destas páginas. Um deles, o ex-agente do SNI Fernando Luiz
Barcellos, de alcunha “agente Jardim”. E… adivinhe quem mais! Sim, ele
mesmo, o delegado Onézimo das Graças Sousa, aquele mesmo frequentador do
restaurante Fritz, da confeitaria Praline e das páginas da Veja e dos
jornalões em 2010.
O ninho de
arapongas da Anvisa foi desativado pelo próprio Serra, o que aconteceu
após a imprensa denunciar que a vida privada de servidores do Ministério
da Saúde e de desafetos do então ministro — entre eles seu colega, o
ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, falecido em 2010 — estaria
sendo esquadrinhada. Na época, o argumento de Serra para a
arregimentação de arapongas foi o medo. Receava ser grampeado por
representantes das indústrias de medicamentos, que teriam sido
contrariados por medidas do governo.
Coincidentemente,
o “Doutor Escuta” e os demais pássaros foram contratados em 2002,
quando partidários do PFL (atual DEM) denunciaram a suposta vinculação
de setores do governo do PSDB com os grampos fatais à candidatura
pefelista à Presidência da República. Teriam levado a Polícia Federal a
descobrir que a empresa Lunus, de propriedade da candidata Roseana
Sarney e de seu marido Jorge Murad, guardava R$ 1,34 milhão em seu
cofre. Suspeita-se que o dinheiro alimentaria a campanha do PFL,
implodida ali mesmo pela apreensão.
O
“Doutor Escuta” vem de longe. Foi no período do presidente João
Baptista Figueiredo que ele se integrou à comunidade de informações.
Entrou pelas mãos do ex-ministro-chefe do SNI, Octávio Medeiros. Seu
rumo foi o Garra, braço armado das ações clandestinas e a arma mais
letal do SNI durante a ditadura. Fontelles recebeu a tarefa de
modernizar o arsenal tecnológico do órgão. Como seu próprio codinome
esclarece, o “Doutor Escuta” comandou uma equipe de trabalho que
desenvolveu aparelhos de escuta com tecnologia nacional que substituiram
os importados.
Faziam parte do
seleto grupo do Garra os coronéis Ary Pereira de Carvalho, o “Arizinho”;
e Ary de Aguiar Freire, acusados de participar do complô que resultou
no assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten em outubro de
1982. Dois meses antes de morrer, o jornalista compôs um dossiê. No
chamado Dossiê Baumbarten, os dois Arys são acusados de terem
participado da reunião em que foi selada a morte do jornalista.
O
sargento Marival Dias, do CIE (Centro de Informação do Exército), soube
da morte do jornalista antes mesmo de seu desaparecimento ser
anunciado. Disse ao autor que Baumgarten teria sido executado pelo
“Doutor César”, codinome do coronel José Brant, também do Garra, a
exemplo de Fontelles. Agente do CIE em Brasília, Dias teve acesso a um
informe interno onde se afirmava que a morte se devia a Brant. Em uma
operação do Garra para intimidar Baumgarten, o “Doutor César” teria se
excedido e matado o jornalista. Isto o teria obrigado a eliminar duas
testemunhas: a mulher de Baumgarten, Janete Hansen, e o barqueiro Manuel
Valente. A reportagem publicada na revista IstoÉ nunca foi desmentida.
Aos
seus clientes, o coronel Fontelles costuma dizer que sua empresa presta
serviços de contraespionagem e não espionagem. Como veremos mais à
frente, foi justamente esse trabalho, ou de contraespionagem, que acabou
envolvendo o autor no episódio da suposta quebra de sigilo de Verônica
Serra durante a campanha presidencial de 2010.
No Viomundo
Nenhum comentário:
Postar um comentário