Às
vezes, a história acontece sob nossos olhos e não nos damos conta. Só
mais tarde atinamos com a importância de algumas mudanças.
Semana
passada, tivemos uma novidade na internet. Justo onde são tão
frequentes que nem merecem registro. Mas não foi coisa pequena ou
corriqueira.
Pela
primeira vez, um vídeo de conteúdo inteiramente político postado no
YouTube se transformou em um grande fenômeno de massa, pelo volume de
acessos e as reações que despertou.
Em
apenas três dias, chegou a mais de 50 milhões de visualizações. Dois
dias depois, passou a marca de 70 milhões. Contadas as alcançadas pelas
diferentes versões que atualmente existem, é provável que já tenha
ultrapassado 100 milhões. Em sete dias.
Os
números são eloquentes, mas não constituem o aspecto mais relevante e
peculiar do ocorrido. Afinal, virais com estatísticas notáveis não são
tão raros. Outro dia mesmo, o vídeo clipe da canção “Ai se eu te pego”,
de Michel Teló, se transformou em um acontecimento mundial bem maior
que o caso que estamos discutindo: só sua versão oficial teve mais de
230 milhões de visualizações.
Mas as diferenças entre esse e o de Michel Teló são enormes.
A principal é o conteúdo. O vídeo Kony 2012
* nada tem de entretenimento. É um documentário político, dura 30
minutos e é falado em inglês. E trata de um assunto de política
internacional e de direitos humanos que se poderia considerar árido.
O
vídeo é uma denúncia das atrocidades cometidas por um tal Joseph Kony,
personagem menor e lamentável dos conflitos que, nos últimos vinte
anos, vêm devastando a África Central. Em uma região do mundo que vive o
pesadelo hobbesiano da ausência do Estado - onde a “guerra de todos
contra todos” está declarada e os fortes esmagam os fracos -, Kony se
distinguiu pelas barbaridades dos soldados de seu “exército”. O palco é
Uganda, seu país de origem.
Entre
muitíssimas violências, sequestrou milhares de crianças de suas
famílias, para escravizá-las e obrigá-las a fazer parte de suas tropas.
Esse é o fulcro da denúncia que motivou o vídeo, produzido e postado
por uma organização chamada Invisible Children, em alusão à ausência de
percepção internacional a respeito de Kony e suas vítimas.
A
discussão do caso em si - quem é Kony, como chegou a ser o que é, que
importância tem hoje em Uganda e na política regional - escapa a nosso
interesse. O notável é como um tema que poucos especialistas conheciam
até semana passada se transformou em assunto que motiva 100 milhões de
pessoas mundo afora.
A
imensa maioria das reações ao vídeo foi positiva, mas o caráter
vagamente esquerdista de seus produtores suscitou a costumeira reação
contrária. A internet também se encheu de vociferações contra a “fraude”
que estariam perpetrando - sabe-se lá o porquê – com os argumentos
típicos da mesma direita raivosa que temos no Brasil.
Isso
em meio a tudo que é característico da internet - paródias
espontâneas, manifestações de apoio, postagens com legendas em dezenas
de idiomas, etc.
Que
consequências concretas o documentário terá? Vai fazer com que 2012
seja o ano do acerto de contas da comunidade internacional com Kony,
como desejam seus realizadores? Fará com que o governo norte-americano
pare de fazer vista grossa aos conflitos que não colocam em risco os
interesses geopolíticos e econômicos do país?
Difícil
dizer. Mas Kony 2012 criou um precedente: 100 milhões de pessoas
pararam para ver - nem que seja em parte – uma denúncia política e foram
discuti-la, sem que fosse necessário exibir imagens chocantes ou
sensacionalistas.
O YouTube tem milhares de vídeos de conteúdo político. Mas nenhum tinha tido o impacto desse.
Será que começou um novo tempo, em que milhões de pessoas mundo afora podem ser mobilizadas por causas políticas e humanitárias?
Veja o vídeo e tire suas conclusões.
(Aqui o vídeo legendado, mas não leve em conta a qualidade da tradução).
Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi
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