Foi um acaso. Eu passava hoje pela Rio Branco, prestes a pegar o Aterro,
quando ouvi gritos e vi uma aglomeração do lado esquerdo da avenida.
Pedi ao motorista para diminuir a marcha e percebi que eram os jovens
estudantes caras-pintadas manifestando-se diante do Clube Militar, onde
acontecia a anunciada reunião dos militares de pijama celebrando o "31
de Março" e contra a Comissão da Verdade.
Só vi jovens, meninos e meninas, empunhando cartazes em preto e branco,
alguns deles com fotos de meu irmão e de minha cunhada. Pedi ao
motorista para parar o carro e desci. Eu vinha de um almoço no Clube de
Engenharia. Para isso, fui pela manhã ao cabeleireiro, arrumei-me,
coloquei joias, um vestido elegante, uma bolsa combinando com o rosa da
estampa, sapatos prateados. Estava o que se espera de uma colunista
social.
A situação era tensa. As crianças, emboladas, berrando palavras de ordem
e bordões contra a ditadura e a favor da Comissão da Verdade. Frases
como "Cadeia Já, Cadeia Já, a quem torturou na ditadura militar". Faces
jovens, muito jovens, imberbes até. Nomes de desaparecidos pintados em
alguns rostos e até nas roupas. E eles num entusiasmo, num ímpeto, num
sentimento. Como aquilo me tocou! Manifestantes mais velhos com eles,
eram poucos. Umas senhoras de bermudas, corajosas militantes. Alguns
senhores de manga de camisa. Mas a grande maioria, a entusiasmada
maioria, a massa humana, era a garotada. Que belo!
Eram nossos jovens patriotas clamando pela abertura dos arquivos
militares, exigindo com seu jeito sem modos, sem luvas de pelica nem
punhos de renda e sem vosmecê, que o Brasil tenha a dignidade de dar às
famílias dos torturados e mortos ao menos a satisfação de saberem como,
de que forma, onde e por quem foram trucidados, torturados e mortos seus
entes amados. Pelo menos isso. Não é pedir muito, será que é?
Quando vemos, hoje, crianças brasileiras que somem, se evaporam e jamais
são recuperadas, crianças que inspiram folhetins e novelas, como a que
esta semana entrou no ar, vendidas num lixão e escravizadas, nós sabemos
que elas jamais serão encontrada, pois nunca serão procuradas. Pois o
jogo é esse. É esta a nossa tradição. Semente plantada lá atrás, desde
1964 - e ainda há quem queira comemorar a data! A semente da impunidade,
do esquecimento, do pouco caso com a vida humana neste país.
E nossos quixotinhos destemidos e desaforados ali diante do prédio do
Clube Militar. "Assassino!", "assassino!", "torturador!", gritava o
garotinho louro de cabelos longos anelados e óculos de aro redondo, a
quem eu dava uns 16 anos, seguido pela menina de cabelos castanhos e
diadema, e mais outra e mais outro, num coro que logo virava um estrondo
de vozes, um trovão. Era mais um militar de cabeça branca e terno
ajustado na silhueta, magra sempre, que tentava abrir passagem naquele
corredor humano enfurecido e era recebido com gritos e desacatos. Uma
recepção com raiva, rancor, fúria, ressentimento. Até cuspe eu vi, no
ombro de um terno príncipe de Gales.
Magros, ainda bem, esses velhos militares, pois cabiam todos no abraço
daqueles PMs reforçados e vestidos com colete à prova de balas, que lhes
cingiam as pernas com os braços, forçando a passagem. E assim eles
conseguiram entrar, hoje, um por um, para a reunião em seu Clube
Militar: carregados no colo dos PMs.
Os cartazes com os rostos eram sacudidos. À menção de cada nome de
desaparecido ao alto-falante, a multidão berrava: "Presente!". Havia
tinta vermelha cobrindo todo o piso de pedras portuguesas diante da
portaria do edifício. O sangue dos mortos ali lembrados. Tremulavam
bandeiras de partidos políticos e de não sei o quê mais, porém isso não
me importava. Eu estava muito emocionada. Fiquei à parte da multidão.
Recuada, num degrau de uma loja de câmbio ao lado da portaria do prédio.
A polícia e os seguranças do Clube evacuaram o local, retiraram todo
mundo. Fotógrafos e cinegrafistas foram mandados para a entrada do
"corredor", manifestantes para o lado de lá do cordão de isolamento. E
ninguém me via. Parecia que eu era invisível. Fiquei ali, absolutamente
sozinha, testemunhando tudo aquilo, bem uns 20 minutos, com eles
passando pra lá e pra cá, carregando os generais, empurrando a
aglomeração, sem perceberem a minha presença. Mistério.
Até que fui denunciada pelas lágrimas. Uma senhora me reconheceu, jogou
um beijo. E mais outra. Pessoas sorriram para mim com simpatia. Percebi
que eu representava ali as famílias daqueles mortos e estava sendo
reverenciada por causa deles. Emocionei-me ainda mais. Então e enfim os
PMs me viram. Eu, que estava todo o tempo praticamente colada neles! Um
me perguntou se não era melhor eu sair dali, pois era perigoso. Insisti
em ficar l mesmo, com perigo e tudo. E ele, gentil, quando viu que não
conseguiria me demover: "A senhora quer um copo d'água?". Na mesma hora o
copo d'água veio. O segurança do Clube ofereceu: "A senhora não prefere
ficar na portaria, lá dentro? ". "Ah, não, meu senhor. Lá dentro não.
Prefiro a calçada mesmo". E nela fiquei, sobre o degrau recuado, ora
assistente, ora manifestante fazendo coro, cumprindo meu papel de
testemunha, de participante e de Angel. Vendo nossos quixotinhos
empunharem, como lanças, apenas a sua voz, contra as pás lancinantes dos
moinhos do passado, que cortaram as carnes de uma geração de
idealistas.
A manifestação havia sido anunciada. Porém, eu estava nela por acaso. Um
feliz e divino acaso. E aonde estavam naquela hora os remanescentes
daquela luta de antigamente? Aqueles que sobreviveram àquelas fotos
ampliadas em PB? Em seus gabinetes? Em seus aviões? Em suas comissões e
congressos e redações? Será esta a lição que nos impõe a História:
delegar sempre a realização dos "sonhos impossíveis" ao destemor
idealista dos mais jovens?
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