Não me espantou nem um pouco a
pesquisa que revelou, há cerca de uma semana, que três em cada dez
paulistanos sofrem algum tipo de transtorno mental, ansiedade e
depressão no topo da lista. São Paulo é uma cidade de loucos exatamente
pelo fato de negar a seus habitantes o direito à cidade.
É a supremacia do carro que oprime o pedestre (e o ciclista), a ausência
quase absoluta de espaços públicos e gratuitos de lazer, o culto às
horas extras não remuneradas, a pressa que desumaniza até mesmo os
usuários de transporte coletivo, sem falar da avalanche de leis que, sob
justificativas aparentemente nobres, quer restringir ou regular o
direito de o cidadão fazer qualquer coisa, dentro ou fora de sua casa.
Acima de tudo, a preservação da moral e os bons costumes. Mas e se eu
quiser dormir tarde, tomar uma cervejinha com os amigos na calçada,
acender um cigarrinho abrigado da chuva? Não em São Paulo! Aqui só há
espaço para o trabalho, a diversão é mal vista.
Em São Paulo, sabe quando? Nunca. Foto: Galeria de zoetnet/Flickr |
A mais recente cruzada da turma dos que sabem o que é melhor para mim é
encabeçada pelo deputado estadual Campos Machado, líder do PTB na
Assembleia Legislativa e autor de um projeto de lei que pretende proibir
a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em espaços públicos em todo o
estado. Vai passar o feriado no litoral?
Nada de levar uma cervejinha no isopor. As praias paulistas são sagrados
locais de repouso dos trabalhadores, o silêncio não pode ser violado
pelo riso histriônico de beberrões e farofeiros. Sentar na calçada
pós-expediente com os amigos para beber? Nem pensar! Aqui não é o Rio, e
a calçada foi feita apenas para as caminhadas apressadas rumo ao
serviço. Se for flagrado com uma latinha de cerveja na mão num parque
público então, que sacrilégio!
Os parques paulistas não são para bebedores. Aliás, desconfio que não
são para ninguém, com suas grades que fecham ao cair da tarde, seus
bancos antimendigos e seguranças sempre dispostos a enxotar os mal
vestidos. Alguém já experimentou a sensação de ser seguido no parque
Villa-Lobos pelos engravatados que zelam pela proteção do local?
Beber em São Paulo é pecado. Não deve ser feito em público. O desvio de
conduta só é tolerado se feito secretamente, em ambientes privados, se
possível dentro de casa, mas nunca na varanda. Ou em bares
claustrofóbicos, voltados para si mesmos, onde raramente é possível
enxergar a vida do lado de fora.
Quem deseja ser visto dando o mau exemplo, não é mesmo? São Paulo é a
locomotiva do Brasil. Se enxerga como um país de primeiro mundo e dele
quer importar o puritanismo que rege a vida social. Nos Estados Unidos,
no Canadá, nos países nórdicos, a bebida alcoólica também não pode ser
vista em público. Ninguém vê uma loira gelada impunemente nua pelas
ruas. É preciso arranjar-lhe uma burka, nem que seja o improvisado saco
plástico a recobrir a latinha de cerveja com moralidade.
Curioso, a turma dos que sabem o que é melhor para mim raramente cita a
Alemanha e suas cervejadas em praças públicas. Talvez porque a nação não
tenha lá tanta importância em termos de desenvolvimento econômico e
social. Afinal, um país que não pune bebedores de cerveja jamais pode
ser próspero.
Ocorre que São Paulo está ficando muito chata. E eu não ando nada bem.
Talvez deva recorrer ao Rivotril para dormir e algum estimulante na
manhã seguinte para não correr o risco de sonolência no trabalho. Desde
que tenha receita médica, isso é permitido e estimulado em São Paulo, a
cidade dos loucos. Mas eu sei lá, acho mais divertido erguer,
impunemente, brindes para o alto e tomar minha cervejinha em paz na
calçada. Antes que me acusem do que não fiz, esclareço: jamais dirigi
sob o efeito do álcool. Só ando de transporte coletivo e, pasmem!,
jamais tentei tirar habilitação. Por não ter carro, inclusive, sou visto
por muitos como párea. Paulistanos só têm cidadania com volante na mão.
É por isso que após uma reunião com amigos no bar (perdoem-me,
conterrâneos, cometi esse desvio de conduta em plena segunda-feira)
decidimos nos manifestar contrariamente ao projeto de lei da turma que
sabe o que é melhor para mim.
Pretendemos fazer um cervejaço, na esquina da Alameda Santos com a
Ministro Rocha Azevedo na próxima sexta-feira. Os mais exaltados
propuseram a Paulista, mas como somos poucos e não queremos atrapalhar o
Deus trânsito, optamos por um ato menor.
Entre os digníssimos anônimos, estarão presentes o Digão, colega de copo
que trabalha com ciências atuariais (seja lá o que isso for, jamais
conversamos sobre trabalho no bar), o Ricardo, que ganha a vida de terno
e gravata e tem uma jornada bem maior que as oito horas regulamentares
da CLT, o Gil, que apesar de evangélico não considera ser pecaminoso
tomar uma cervejinha de leve, o Lucas, assíduo freqüentador de
micaretas, o Evaristo, que gosta mais de uma festa do que o próprio
carro, entre outros desajustados que, bem, querem continuar tomando uma
cervejinha impunemente na rua, na calçada, nos parques, na praia.
Também confirmou presença o amigo João do Violão, a quem não vejo há
tempos, mas que está igualmente indignado com o conservadorismo à
paulista. Talvez seja por esta razão que o compositor da música Eu bebo
sim, um dos hinos da boêmia, se dedique tanto a organizar passeios
culturais no Rio de Janeiro, onde o samba e a boemia ainda não foram
criminalizados. Ele aposta que o protesto pode ser grande, fazer
barulho.
Eu não teria tanta certeza. Somos uma espécie em extinção, essa que
gosta de se divertir em público, inclusive com o copo na mão. Então o
convite está estendido a todos. Quem quiser, apareça na próxima
sexta-feira, 9 de março, a partir das 19 horas, na esquina da Alameda
Santos com a Ministro Rocha Azevedo. Há bares na redondeza para
abastecer o pessoal, mas quem desejar traga algo de casa. Leve ainda
cartazes, perucas, adereços carnavalescos. É protesto, mas não precisa
ser chato. O grito será um só: “São Paulo, deixa de ser reaça!.” E quem
for aplicado pode decorar o hino abaixo, aqui na interpretação de Elza
Soares.
Eu bebo sim
(Luis Antônio e João do Violão)
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que já tá com o pé na cova
Não bebeu e isso prova que a bebida não faz mal
Uma pro santo, desce o choro a saidera
Desce toda a prateleira
Diz que a vida tá legal
Eu bebo sim, eu to vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Tem gente que detesta um pileque
Diz que é coisa de moleque, cafajeste ou coisa assim
Mas essa gente quando tá com a cara cheia
Vira chave de cadeia, e esvazia o botequim
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Eu bebo sim, e estou vivendo
Tem gente que não bebe e está morrendo
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
Bebida, não faz mal a ninguém
Água faz mal à saúde
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