"O araponga e o repórter"
A matéria foi bombástica e ajudou a deflagrar a crise do “mensalão”. Uma reportagem de 18 de maio de 2005, de Policarpo Jr., da sucursal da Veja em Brasília, mostrava o flagrante de um funcionário dos Correios – Mauricio Marinho – recebendo R$ 3 mil de propina (clique aqui)
A abertura seguia o estilo didático-indagativo da revista:
(…)
Por quê? Por que os políticos fazem tanta questão de ter cargos no
governo? Para uns, o cargo é uma forma de ganhar visibilidade diante do
eleitor e, assim, facilitar o caminho para as urnas. Para outros, é um
instrumento eficaz para tirar do papel uma idéia, um projeto, uma
determinada política pública. Esses são os políticos bem-intencionados.
Há, porém, uma terceira categoria formada por políticos desonestos que
querem cargos apenas para fazer negócios escusos – cobrar comissões,
beneficiar amigos, embolsar propinas, fazer caixa dois, enriquecer
ilicitamente.
A revista informava que tinha conseguido dar um flagrante em um desses casos na semana anterior:
Raro, mesmo, é flagrar um deles em pleno vôo. Foi o que VEJA conseguiu na semana passada.
Anotem
a data que a revista menciona que recebeu a gravação: semana passada.
Será importante para entender os lances que serão mostrados no decorrer
deste capítulo.
A
matéria, como um todo, não se limitava a descrever uma cena de pequena
corrupção explícita, embora só esta pudesse ser comprovada pelo
grampo. Tinha um alvo claro, que eram as pessoas indicadas pelo esquema
PTB, especialmente na Eletronorte e na BR Distribuidora. O alvo era o
esquema; Marinho, apenas o álibi.
O
que a matéria não mostrava eram as intenções efetivas por trás do
dossiê e do grampo. Os R$ 3 mil eram um álibi para desmontar o esquema
do PTB no governo, decisão louvável, se em nome do interesse público;
jogo de lobby, se para beneficiar outros grupos.
Antes de voltar à capa, uma pequena digressão sobre as alianças espúrias do jornalismo.
Os dossiês e os chantagistas
A
partir da campanha do “impeachment” de Fernando Collor, jornalistas,
grampeadores e chantagistas passaram a conviver intimamente em Brasília.
Até então, havia uma espécie de barreira, que fazia com que
chantagistas recorressem a publicações menores, a colunistas da
periferia, para montar seus lobbies ou chantagens. Não à grande mídia.
Com
o tempo, a necessidade de fabricar escândalo a qualquer preço provocou
a aproximação, mais que isso, a cumplicidade entre alguns jornalistas,
grampeadores e chantagistas. Paralelamente, houve o desmonte dos
filtros de qualidade das redações, especialmente nas revistas semanais e
em alguns diários.
Foi
uma associação para o crime. Com um jornalista à sua disposição, o
grampeador tem seu passe valorizado no mercado. A chantagem torna-se
muito mais valiosa, eficiente, proporcional ao impacto que a notícia
teria, se publicada. Isso na hipótese benigna.
É
uma aliança espúria, porque o leitor toma contato com os grampos e
dossiês divulgados. Mas, na outra ponta, a publicação fortalece o
achacador em suas investidas futuras. Não se trata de melhorar o país,
mas de desalojar esquemas barra-pesadas em benefício de outros
esquemas, igualmente barra-pesadas, mas aliados ao repórter. E fica-se
sem saber sobre as chantagens bem sucedidas, as que não precisaram
chegar às páginas de jornais.
Por
ser um terreno minado, publicações sérias precisam definir regras
claras de convivência com esse mundo do crime. A principal é o
jornalista assegurar que material recebido será publicado – e não
utilizado como elemento de chantagem.
Nos anos 90 esses preceitos foram abandonados pelo chamado jornalismo de opinião. No caso da Veja a
deterioração foi maior que nos demais veículos. O uso de matérias em
benefício pessoal (caso dos livros de Mario Sabino), o envolvimento
claro em disputas comerciais (a “guerra das cervejas” de Eurípedes
Alcântara), o lobby escancarado (Diogo Mainardi com Daniel Dantas), a
falta de escrúpulos em relação à reputação alheia, tudo contribuiu para
que se perdessem os mecanismos de controle.
Submetida a um processo de deterioração corporativa poucas vezes visto, a Abril
deixou de exercer seus controles internos. E a direção da revista
abriu mão dos controles externos, ao abolir um dos pilares do moderno
jornalismo – o direito de resposta – e ao intimidar jornalistas de
outros veículos com seus ataques desqualificadores.
É nesse cenário de deterioração editorial que ocorre o episódio Maurício Marinho.
A parceria com o araponga
Nas
alianças políticas do governo Lula, os Correios foram entregues ao
esquema do deputado Roberto Jefferson. Marinho era figura menor, homem
de propina de R$ 3 mil.
Em
determinado momento, o esquema Jefferson passou a incomodar lobistas
que atuavam em várias empresas. Dentre eles, o lobista Arthur Wascheck.
Este
recorreu a dois laranjas – Joel dos Santos Filhos e João Carlos
Mancuso Villela – para armar uma operação que permitisse desestabilizar
o esquema Jefferson não apenas nos Correios. como na Eletrobrás e na
BR Distribuidora. É importante saber desses objetivos para entender a
razão da reportagem da propina dos R$ 3 mil ter derivado - sem nenhuma
informação adicional - para os esquemas ultra-pesados em outras
empresas. Fazia parte da estratégia da reportagem e de quem contratou o
araponga.
A
idéia seria Joel se apresentar a Marinho como representante de uma
multinacional, negociar uma propina e filmar o flagrante. Como não
tinham experiência com gravações mais sofisticadas, teriam decidido
contratar o araponga Jairo Martins.
E, aí, tem-se um dos episódios mais polêmicos da história do jornalismo contemporâneo, um escândalo amplo, do qual Veja
acabou se safando graças à entrevista de Roberto Jefferson à repórter
Renata Lo Prete, da Folha, que acabou desviando o foco da atenção para o
“mensalão”.
Havia
um antecedente nesse episódio, que foi o caso Valdomiro Diniz, a
primeira trinca grave na imagem do governo Lula. Naquele episódio
consolidaram-se relações e alianças entre um conjunto de personagens
suspeitos: o bicheiro Carlinhos Cachoeira (que bancou a operação de
grampo de Valdomiro), o araponga Jairo Martins (autor do grampo) e o
jornalista Policarpo Jr (autor da reportagem).
No
caso Valdomiro, era um contraventor – Carlinhos Cachoeira – sendo
achacado por um dos operadores do PT, enviado pelo partido ao Rio de
Janeiro, assim como Rogério Buratti, despachado para assessorar Antonio
Palocci quando prefeito de Ribeirão.
Jairo
era um ex-funcionário da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência),
contratado pelo bicheiro para filmar o pagamento de propina a Valdomiro
Diniz.
Tempos depois, Jairo foi convidado para um almoço pelo genro de Carlinhos Cachoeira, Casser Bittar.
Lá, foi apresentado a Wascheck,
que o contratou para duas tarefas, segundo o próprio Jairo admitiu à
CPI: providenciar material e treinamento para que dois laranjas
grampeassem Marinho; e a possibilidade do material ser publicado em
órgão de circulação nacional.
Imediatamente
Jairo entrou em contato com Policarpo e acertou a operação. O
jornalista não só aceitou a parceria, antes mesmo de conhecer a
gravação, como avançou muito além de suas funções de repórter.
O
grampo em Marinho foi gravado em um DVD. Jairo marcou, então, um
encontro com Policarpo. Foi um encontro reservado - eles jamais se
falavam por telefone, segundo o araponga -, no próprio carro de
Policarpo, no Parque da Cidade. Policarpo levou um mini-DVD, analisou o
material e atuou como conselheiro: considerou que a gravação ainda não
estava no ponto, que havia a necessidade de mais. Recebeu a segunda,
constatou que estava no ponto. E guardou o material na gaveta,
aguardando a autorização do araponga, mesmo sabendo que estava se
colocando como peça passiva de um ato de chantagem e achaque.
Wascheck
tinha, agora, dois trunfos nas mãos: a gravação da propina de R$ 3 mil
e um repórter, da maior revista do país, apenas aguardando a liberação
para publicar a reportagem.
Quando saiu a reportagem, a
versão do repórter de que havia recebido o material na semana anterior
era falsa e foi desmentida pelos depoimentos dados por ele e por Jairo
à Policia Federal e à CPI do Mensalão.
Pressionado pelo eficiente relator Osmar Serraglio, na CPI do Mensalão, Jairo negou ter recebido qualquer pagamento de Wascheck. Disse ter se contentado em ficar com o equipamento, provocando reações de zombaria em vários membros da CPI.
Depois, revelou outros trabalhos feitos em parceria com a Veja.
Mencionou série de trabalhos que teria feito e garantiu que sua função
não era de araponga, mas de jornalista. O único órgão onde seus
trabalhos eram publicados era a Veja. Indagado pelos
parlamentares se recebia alguma coisa da revista disse que não, que seu
objetivo era apenas o de "melhorar o pais".
Segundo o depoimento de Jairo:
‘Aí
fiquei esperando o OK do Artur Washeck pra divulgação do material na
imprensa. Encontrei com ele pela última vez no restaurante, em Brasília,
no setor hoteleiro sul, quando ele disse: ‘Eu vou divulgar o fato.
Quero divulgar’. E decorreu um período que essa divulgação não saía. Aí
foi quando eu fiz um contato com o jornalista e falei: ‘Pode divulgar a
matéria’’.
A revelação do episódio provocou reações acerbas de analistas de mídia.
No Observatório da Imprensa, Alberto Dines publicou o artigo “A Chance da Grande Catarse do Jornalismo”
O
atual ciclo de denúncias não chega a ser uma antologia de jornalismo
mas é uma preocupante coleção de mazelas jornalísticas. Busca-se a
credibilidade mas poucos oferecem transparência, pretende-se a
moralização da vida pública mas os bastidores da imprensa continuam
imersos na sombra:
Tudo começou com uma matéria de capa da Veja sobre as propinas nos Correios, clássico do jornalismo fiteiro.
(...) Carece de (...) transparência a ouverture desta triste e ruidosa temporada através da Veja.
Dois meses depois, a divulgação do vídeo da propina nos Correios
continua envolta em sombras, rodeada de dúvidas e desconfianças. E,
como não poderia deixar de acontecer com fatos mantidos no lusco-fusco
da dubiedade, cada vez que a matéria é examinada ou discutida sob o
ponto de vista estritamente profissional, mais interrogações levanta.
Caso
da entrevista ao Jornal Nacional (Rede Globo, quinta-feira, 30/6) do
ex-agente da ABIN, Jairo Martins de Souza, autor da gravação. O
araponga — que, aliás, se diz jornalista [veja abaixo comentários de
Ricardo Noblat] e faz negócios com jornalistas — revelou que ofereceu o
vídeo ao repórter Policarpo Júnior, da sucursal da Veja em Brasília, e
que este aceitou-o antes mesmo de examinar o seu teor [abaixo, a
transcrição da matéria do JN].
Na
hora da entrega, o jornalista teria usado um reprodutor portátil de
DVD para avaliar a qualidade das imagens. De que maneira chegou ao
jornalista e por que este aceitou o vídeo são questões que até hoje não
foram esclarecidas.
Tanto
o repórter como a revista recusam-se terminantemente a oferecer
qualquer tipo satisfação ou esclarecimento aos leitores. Não se trata de
proteger as fontes: elas seriam inevitavelmente nomeadas quando o
funcionário flagrado, Maurício Marinho, começasse a depor. Foi
exatamente o que aconteceu e hoje Veja carrega o ônus de ter se
beneficiado de uma operação escusa – chantagem de um corrupto preterido
ou ação formal da Abin para desmoralizar um aliado incômodo (o PTB, de
Roberto Jefferson).
(...)
Araponga não é jornalista, vídeo secreto ainda não é reconhecido como
gênero de jornalismo. Talvez o seja num futuro próximo.
O episódio mereceu comentários do blogueiro Ricardo Noblat:
Ao
ser contratado para filmar Marinho e grampear André Luiz, a primeira
coisa que ele disse que fez foi procurar a Veja e oferecer o material.
‘Foi um trabalho puramente jornalístico’, garantiu.
A
amigos, nas duas últimas semanas, Jairo confessou mais de uma vez que
espera ganhar o próximo Prêmio Esso de Jornalismo. Ele se considera um
sério candidato ao prêmio.
Não
é brincadeira não, é serio! Porque ele está convencido de que filmou e
grampeou como free-lancer da Veja – embora jamais tenha recebido um
tostão dela por isso. Recebeu dos que encomendaram as gravações.
Jairo ganhava como araponga e pensava em brilhar como jornalista.
É, de certa forma faz sentido."
Tempos
depois, a aliança com o araponga renderia a Policarpo a promoção para
chefe de sucursal da Veja em Brasília. A revista já caíra de cabeça,
sem nenhum escrúpulo, no mundo nebuloso dos dossiês e dos pactos com
lobistas. E o grande pacto do silêncio que se seguiu na mídia, permitiu
varrer para baixo do tapete as aventuras de Veja com o araponga repórter.
O final da história
Parte
da história terminou em agosto de 2007. Sob o titulo “PF desmonta nova
máfia nos Correios”, o Correio Braziliense noticiava o desbaratamento
de uma nova quadrilha que tinha assumido o controle dos Correios (clique aqui).
No
comando, Arthur Wascheck, que assumiu o comando da operação de
corrupção dos Correios graças ao serviço encomendado a Jairo - grampo
mais publicação do resultado na Veja.
Durante a Operação Selo, foram presas cinco pessoas, em dois estados mais o Distrito Federal.
Segundo o jornal:
Entre
os presos estão Sérgio Dias e Luiz Carlos de Oliveira Garritano,
funcionários dos Correios, além dos empresários Antônio Félix Teixeira,
Marco Antônio Bulhões e Arthur Wascheck, considerado pela PF como
líder do grupo e acusado de ter sido o responsável pela gravação feita
no dia em que Marinho recebia a propina. Os investigadores não
quantificaram o volume de recursos envolvidos nas fraudes, mas calculam
que seja de dezenas de milhões de reais.
De acordo com os investigadores, “o grupo agia como traficantes nos morros".
“Havia
uma quadrilha na ECT (Empresa de Correios e Telégrafos), que foi
desbaratada e afastada. A outra organização tomou o lugar dela. Assim
como os traficantes fazem, quando saem, morrem ou são presos, acontece a
mesma coisa no serviço público. Quando uma quadrilha sai do local,
entra outra e começa a praticar atos ilícitos no lugar da que saiu”,
explica o delegado Daniel França, um dos integrantes do grupo de
investigação.
A corrupção tinha apenas trocado de mãos:
Para o Ministério Público Federal, o entendimento era o mesmo.
“Não
se pode dizer que a corrupção terminou ou se atenuou. O que houve foi
uma substituição de pessoas, alijadas do esquema”, afirma o procurador
da República Bruno Acioli.
Segundo
ele, há pelo menos 20 empresas, muitas delas ligadas a Wascheck, estão
envolvidas nas fraudes que podem atingir outros órgãos públicos,
conforme investigações da PF.
A ficha de Wascheck era ampla e anterior ao episódio do qual Veja aceitou participar:
O
empresário, conforme os investigadores, atuava na área de licitações
desde 1994, sendo que um ano depois ele fora condenado por
irregularidades em licitação para aquisição de bicicletas pelo
Ministério da Saúde.
O valor das fraudes chegava a milhões de reais:
Segundo
a polícia, o grupo de Wascheck vendia todo tipo de material para os
Correios. De sapato a cofres, sendo que muitos integrantes do esquema
eram também procuradores de outras empresas envolvidas nas
concorrências. Com a análise dos documentos, que começou a ser feita
ontem, os investigadores devem chegar aos valores das fraudes. “O que
posso dizer é que esse prejuízo é de milhões de reais. Dezenas de
milhões de reais”, diz o procurador da República, ressaltando que seu
cálculo se baseia em alguns casos específicos. “Existem licitações na
casa de bilhões de reais”, afirma o procurador.
No sistema de buscas da revista, as pesquisas indicam o seguinte:
Operação Selo Wascheck: 0 ocorrências
Operação Selo (frase exata) Período 2007: 0 ocorrências
Revista de 8 de agosto de 2007: nenhuma menção
Na edição de 15 de agosto, nenhuma menção. Mas uma das materias especiais atende pelo sugestivo título de “Porque os corruptos não vão presos”
"Frágil como papelA Justiça brasileira é incapaz de manter presos assassinos confessos e corruptos pegos em flagrante. Na origem da impunidade está a própria lei".
A
reportagem fala do mensalão, insinua que os implicados até melhoraram
de vida, menciona símbolos midiáticos de corrupção (Quércia, Maluf,
Collor etc). Nenhuma palavra sobre a Operação Selo e sobre o papel
desempenhado pelas reportagens de escândalo da própria revista no jogo
das quadrilhas dos Correios.
Seus aliados foram protegidos.
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