A Dama de Ferro
Antes mesmo de seu lançamento, na verdade, imediatamente depois da divulgação do primeiro pôster que a mostrava caracterizada como Lady Margaret Thatcher, a única primeira-ministra na história do Reino Unido, a atriz recordista em indicações Meryl Streep (é a sua décima sétima) disparava na bolsa de apostas do Oscar e era considerada vencedora antecipada. Expectativas altas e merecidos louros para esse monstro da interpretação, mas que causou um efeito colateral perigoso: bastou exclusivamente isso para que A Dama de Ferro fosse elevado a um status completamente desproporcional aos méritos artísticos do longa, nada mais do que uma deturpada biografia da poderosa mulher e uma visão histórica de alguns momentos cruciais na rígida e conservadora política fiscal e socioeconômica popularmente conhecida como Thatcherismo. Demagogia em forma de cinema; uma visão alienatória e condescendente que ao invés de esclarecer ao público, o cega levando-o automaticamente a perdoar as ações assustadoras e cruéis de uma pessoa intransigente, obstinada e egoísta. Ou seja, uma irresponsabilidade artística disfarçada de liberdade criativa que desinforma e agride a história de homens e mulheres que atravessaram os mais de 11 anos de governo de Lady Thatcher. Contando com uma abordagem narrativa desonesta e apelativa, o roteiro de Abi Morgan apresenta uma frágil e idosa Margaret Thatcher, acometida de sintomas de demência e confusão mental, indicativos do mal de Alzheimer, e vigiada por guardas orientados por sua filha Carol (Colman). Proibida sequer de ir ao mercado da esquina comprar leite, Thatcher convive, esquizofrenicamente, com o falecido marido Denis (Broadbent), uma espécie de fantasma do natal passado do conto de Charles Dickens misturado com o anjo redentor do clássico natalino de Frank Capra A Felicidade não se Compra. Na conjectura proposta pela diretora Phyllida Lloyd (como alguém saí do musical Mamma Mia! e pula em um drama política é o verdadeiro mistério), seria possível ter piedade de homens como Adolf Hitler, Napoleão ou os perversos ditadores militares brasileiros - evidentemente, se todos tivessem atingido os 80-90 anos -, e consigo imaginar um Hitler balbuciante e fragilizado comovendo os espectadores durante um discurso edificante a alucinação de Eva Braun quando justifica o genocídio judeu na segunda guerra mundial. O que levaria a perdoar seu passado e os milhões de mortos nos campos de concentração. Covarde e não-fidedigna, desvirtuando os fatos reais a seu bel-prazer - o que eleva, por comparação, a recente biografia de J. Edgar à condição de obra-prima -, a roteirista Abi Morgan é acidentalmente feliz na narrativa tradicionalmente episódica, pois revisita os lapsos de memória vivenciados por Thatcher que sobrevêm sem convites, com o rigor esperado de uma mulher demente. Dessa maneira, é natural que no percurso da adolescente idealista filha de um líder político local aos últimos dias a frente do Partido Conservador do parlamento, Thatcher se veja como um baluarte do movimento feminista na política mundial (e foi!) e se sinta quase como vítima no meio de um legislativo predominantemente masculino e machista (e foi, também!). Outrossim, seria absolutamente improvável que, na velhice, ela pudesse tatear a famigerada política que implantou no Reino Unido durante seu governo, restando lembranças de como ela desejava expor o que "não era certo", a imagem de uma menina certinha ajudando na quitanda do seu pai ou os conselhos de "nunca siga a multidão" proferidos com um entusiasmo tipicamente canastrão e patriótico. Todavia, nesse compêndio digressivo não há compromisso histórico e a diretora Phyllida Lloyd, na falta de melhor palavra, é totalmente incompetente mesmo quando expõe os elementos controversos da sua trajetória. Veja que, durante as acusações de detratores em rede nacional, a diretora obriga Meryl Streep a desligar o televisor sem ao menos escutar o teor daquelas. As menções à recessão, ao maior índice de desemprego e à baixa produção da indústria ao invés de usados para apontar as falhas na política da Dama de Ferro (apelido "carinhosamente" conferido após os atritos com os Soviéticos), mascaram-se de crise mundial escusando a responsabilidade pessoal das ações da primeira-ministra. Mas, como levar a sério uma diretora que se limita a planos inclinados nos quais Thatcher encontra-se dentro do carro e protestantes agridem os vidros argumentando que "ela deveria ser uma mãe" ou que ensaia a preparação vocal emprestada de O Discurso do Rei? E, depois de comparar responsabilidade fiscal a orçamento doméstico para escusar as privatizações, a taxação aos mais pobres e a desregulamentação econômica, revelando-se voraz governante, Phyllida perde a mão completamente ao expor as verdadeiras causas do conflito nas Malvinas. Supostamente escondida debaixo do véu da defesa da soberania britânica, o conflito pelas inexpressivas ilhas no atlântico sul provocou desequilíbrio financeiro e a morte de centenas de argentinos e britânicos com fins praticamente eleitoreiros restabelecendo a popularidade da Dama de Ferro para alcançar um novo mandato no parlamento, e a omissão desse subtítulo no contexto da guerra é de uma temeridade gigantesca. Aliás, transformá-la em mártir de atentados patrocinados pelo grupo terrorista IRA (mormente o do Grand Hotel), depois de declamar a oração de São Francisco de Assis e colaborar para a derrubada do muro de Berlim e a queda do comunismo são tentativas desesperadas de atacar para todos os lados e conquistar o maior séquito de adoradores para a ex-primeira-ministra. Ou, os retratos com o Papa e o presidente norte-americano Ronald Reagen, um de seus aliados mais fiéis, e a morte de Airey Neave (Farrell), leal companheiro, fossem o bastante para, junto da trilha sonora edificante de Thomas Newman, transformá-la no ideal mais resplandescente e belo da democracia. Infelizmente, porém, o espectador médio não parece estar interessado em verossimilhança, bastando a presença de Meryl Streep para eximir a narrativa das incongruências factuais. Digna dos elogios e prêmios recebidos, a composição da atriz norte-americana é milimetricamente precisa, habitando o mito Thatcher da mesma maneira com que reproduziu os maneirismos de Julia Child em Julia & Julie (sua última indicação ao Oscar). Adotando um tom de voz anasalado e pausado, pronunciando as sílabas e frases com rigor gramatical invejável, com um olhar adocicado dissimulando uma imposição fulminante e uma postura austera, Streep perde-se na figura da primeira-ministra e, depois de todos esses anos, me impressiono como a atriz não enlouqueceu no método de atuação perfeccionista que adota. Ajudada por Alexandra Roache, cuja ingenuidade e insegurança retratados na juventude funcionam por contraste realçando a megera intransigente que viria a se tornar, Meryl Streep ultimamente transforma-se na Dama de Ferro graças a boa maquiagem e a arcada dentária de dentes sibilinos, levemente exagerando na prótese do pescoço. Habitando o n° 10 da Downing Street por mais de 11 anos, renunciando ao cargo após a "traição" de seus lacaios conservadores (não vejo adjetivação mais adequada), A Dama de Ferro tem Meryl Streep. Para muitos, isso basta; outros, como eu, sentirão-se traídos e escarneados. Não é culpa de humanizar o biografado - A Queda demonstrou quão honesto pode ser esse processo sem descaracterizar o sujeito, no caso Hitler -, mas sim transformar uma mulher cheia de defeitos como Margaret Thatcher em uma vítima da sociedade machista, um mártir de relacionamentos familiares e intrigas partidárias e, por que não, uma santa. Por falar nisso, eis um papel que eu sonho assistir: Meryl Streep vivendo Madre Teresa de Calcutá.
Fonte: http://cinemacomcritica.blogspot.com
Do Blog BURGOS (Cãogrino)
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