Não morro de amores pela economista Miriam Leitão, não por desconsiderar
os seus conhecimentos específicos, mas por divergir da ideologia que
comanda sua visão econômica, que – mesmo que ela o negue - tem o viés
neoliberal que vê no mercado o deus supremo.
Mas, hoje, quero falar da jornalista Miriam Leitão e, sem o menor receio
de me tornar incoerente e, pelo contrário, por um dever de honestidade,
registro aqui como altamente meritório e positivo o seu trabalho de
reportagem – junto com o jornalista Cláudio Renato – que, no jornal “O
Globo” e no canal “Globo News”, em matéria intitulada “Anos de chumbo”,
traz à baila – no momento em que parece que, finalmente, se instaurará
no país a “Comissão da Verdade” – o caso Rubens Paiva, jornalista preso
pelos organismos da ditadura e cuja história e destino, a partir da
prisão, continuam até hoje não esclarecidos “oficialmente”.
A reportagem em questão abordou honesta e criteriosamente vários
aspectos do caso, ouviu o que se poderiam considerar os dois lados da
questão, mas em nenhum momento deixou de revelar uma postura de
indignação diante do episódio, um dos mais emblemáticos dos anos de
chumbo da ditadura brasileira, suas perseguições, torturas e mortes.
Percebe-se com detalhes, através dos depoimentos dos familiares, o clima
de terror que então se implantou na caça às bruxas “subversivas” que o
regime militar perseguiu.
Percebe-se, em depoimentos de participantes do movimento de resistência,
uma motivação bem diferente da apregoada pelo regime para a luta armada
em que alguns se envolveram. Percebe-se, mesmo nos atos adjetivados
como terroristas, o objetivo de opor-se à repressão e libertar aqueles
que, nos cárceres, penavam as torturas pelo delito de opinião e pela não
aceitação do jugo militar. E, se ainda pairasse algum tipo de dúvida
sobre o que então se viveu, percebe-se, no depoimento do General Rocha
Paiva, a convicção de que os atos de desumanidade de então – as
torturas entre eles - podiam ser justificados como uma espécie de
defesa, diante de pessoas subversivas que (sic) queriam implantar no
país regimes totalitários do tipo soviético, maoísta ou cubano.
Antes do golpe, havia um regime democrático no país, um regime cujos
governantes tinham sido colocados no poder pelo voto.
Quem viveu aquele momento histórico no Brasil , sabe que a luta que se
travou no período pré-golpe não foi uma luta pelo socialismo –
impensável para as condições de então -, nem por uma “república
sindicalista” (jargão da época). mas pela implantação das chamadas
“reformas de base” – a agrária como carro-chefe -, que os oligárquicos
setores reacionários do país não aceitavam. Fundamentalmentete isso. E
se é verdade que havia, entre os que queriam mudanças, aqueles que as
desejavam mais profundas, tratava-se de uma minoria que não oferecia
qualquer perigo à “estabilidade das instituições democráticas
nacionais”. Os setores conservadores, politicamente encastelados na UDN e
auxiliados pela CIA (havia uma política americana para a América Latina
nesse sentido) contaminaram as hostes militares com um suposto “perigo
comunista”, e deram um golpe institucional, fazendo que se voltassem
contra o povo os fuzis, tanques e baionetas pagos pelo povo. Afirmar que
os atos de tortura do regime militar eram reação ao terror implantado
pelos que reagiam é contar a história a partir da metade e,
deliberadamente, omitir as motivações originais das “partes envolvidas”.
E não dá para comparar essas motivações.
A hora é, sim, de trazer de volta o convenientemente esquecido. O país
não pode conviver com a ausência de esclarecimentos sobre as ações então
perpetradas. E não pode, simplesmente, vulgarizar o que se passou
através da palavra “anistia” que, se efetivamente se deve aplicar a
muitos casos menos graves, não deveria servir para acobertar, por
exemplo, a tortura. Legalmente, aliás, a anistia não se aplica aos
crimes que continuam em curso. Afinal, quando se prende alguém que nunca
mais aparece, que data deve prevalecer para considerar uma possível
anistia? A honesta e oportuna reportagem de Miriam Leitão soma-se a um
sem número de documentos, depoimentos e atos que representam posturas
respeitáveis diante dos mais caros valores humanos. E se estou aqui
elegendo como tema algo que já foi apresentado por muitos de meus
colegas colunistas é porque penso que nunca é demais: nada deve ser
esquecido e tudo deve ser apurado. Quanto mais se falar sobre isso,
melhor, porque nada é mais indigno do que a tortura. Ela deixa à mostra
um lado ruim que ainda mora no ser humano, a sua bestialidade
ancestral. Não há como compactuar com ela, esquecer que existiu.
Recentemente, recebi de minha filha uma mensagem em que ela, antecipando
um livro que vai me presentear , da poeta polonesa Wislawa
Szymborska, que morreu recentemente e viveu os horrores da guerra,
transcrevia o fragmento de um dos seus poemas: “Nada mudou./O corpo
sente dor, necessita comer, respirar e dormir, /... tem a pele tenra e
logo debaixo sangue, / tem uma boa reserva de unhas e dentes, /ossos
frágeis, juntas alongáveis.
Nas torturas leva-se tudo isso em conta."
No presente, a despeito das reações que já se manifestam nos meios
militares, não se pode e não se deve esquecer o passado, para que os
erros brutais cometidos nunca mais se repitam no futuro. Esse é um
imperativo de consciência.
Sobre o autor deste artigoRodolpho Motta LimaAdvogado
formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de Brasil) e professor de
Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ , com atividade
em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância política nos
anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil. Funcionário
aposentado do Banco do Brasil.Direto da Redação.
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