Um dos preconceitos mais firmemente bem estabelecidos no Brasil é
aquele que afirma que a culpa de todos os problemas do país decorre da
“ignorância do povo”. A elite social da população brasileira, formada
pelas classes A e B, em linhas gerais, está profundamente convencida de
que o seu status de elite social lhe concede – como um bônus – também o
título de “elite intelectual” do país.
Dentro desse raciocínio, a elite brasileira “chegou lá” não apenas
economicamente, mas também no que diz respeito às esferas intelectuais e
morais – talvez até espirituais. O país só não vai pra frente,
portanto, por causa dessa massa de ignóbeis das classes inferiores.
Embora essa ideia preconcebida seja confortável para o ego dos que a
sustentam, os fatos insistem em negar a tese do “povo ignorante versus elite inteligente”.
O motivo é simples de entender: em nenhum lugar do mundo, a figura
genericamente considerada do “povo” se destaca como iluminada ou genial.
Por definição, uma autêntica elite intelectual de um país se destaca,
precisamente, por seu contraste com a mediocridade (aí entendida como
“relativa ao que é mediano”). Ou seja, não é “o povo” que tem obrigações
intelectuais para com a elite social, e sim, justamente o contrário: é
preferencialmente entre a elite social e econômica que se espera que
surja, como consequência das melhores condições de vida desfrutadas, uma
elite intelectual digna do nome.
Analfabetos funcionais
Uma elite social que, intelectualmente, faça jus ao espaço que ocupa na
sociedade, não apenas cumpre com o seu papel social de dar algum
retorno ao meio que lhe deu as condições para uma vida melhor como,
ainda, cumpre o seu papel de servir como exemplo – um exemplo do tipo
“estude você também”, e não um exemplo do tipo “lute para poder comprar
um automóvel tão caro quanto o meu”.
Tendo isso em mente, torna-se fácil perceber que o problema do Brasil
não é que o nosso povo seja “mais ignorante”, pela média, do que a
população dos Estados Unidos ou das maiores economias europeias. O
problema, isso sim, é que o nosso país ostenta aquela que é talvez a
elite social mais ignorante, presunçosa e intelectualmente preguiçosa do
mundo, que repele qualquer espécie de intelectualidade autêntica
precisamente porque acredita que seu status social lhe confere,
automaticamente, o decorrente status de membro da elite intelectual
pátria, como se isso fosse uma espécie de título aristocrático.
Nenhum país do mundo tem um povo cujo cidadão médio é extremamente
culto e devorador de livros. O problema se dá quando um país tem uma
elite social que é extremamente inculta e lê/escreve num nível digno de
analfabetismo funcional. Pesquisas recentemente divulgadas dão por conta
que apenas 25% dos brasileiros são plenamente alfabetizados, e que o
número de analfabetos funcionais entre estudantes universitários é de
38%. A elite social brasileira possivelmente acredita que a totalidade
desses 75% de deficientes intelectuais encontra-se abrangida pelas
classes C, D e E.
Sem diferença
Será mesmo? Outra pesquisa recentemente divulgada noticiava que o
brasileiro lê uma média de cerca de quatro livros por ano. Enquanto os
integrantes da Classe C afirmavam ter lido 1,79 livro no último ano, os
integrantes da Classe A disseram ter lido 3,6. O número é maior, como
naturalmente seria de se esperar, mas a diferença é muita pequena dado o
abismo de condições econômicas entre uma classe e outra. Qual é o dado
grave que se constata aí? Será que o problema real da formação
intelectual do nosso país está no fato de que o cidadão médio lê apenas
dois livros por ano? Ou está no fato de que a autodenominada elite
intelectual do país lê apenas quatro livros por ano? Vou encerrar o
argumento ficando apenas no dado quantitativo, sem adentrar a provocação
qualitativa de questionar se, entre esses quatro livros anuais, consta
alguma coisa que não sejam os últimos e rasos best-sellers de vitrine, a literatura infanto-juvenil e os livros de dieta e autoajuda.
O que importa é ter a consciência de que o descalabro intelectual
brasileiro não reside no fato de que o típico cidadão médio demonstra
desinteresse pela vida intelectual e gosta mais de assistir televisão do
que de ler livros. Ora, este é o retrato do cidadão médio de qualquer
país do mundo, inclusive das economias mais desenvolvidas.
O que é digno de causar espanto é, por exemplo, ver Merval Pereira
sendo eleito um imortal da Academia Brasileira de Letras em virtude do
“incrível” mérito literário de ter reunido, na forma de livro, uma série
de artigos jornalísticos de opinião, escritos por ele ao longo dos
anos. Ou seja: dependendo dos círculos sociais que você frequenta, hoje é
possível ingressar na Academia Brasileira de Letras meramente
escrevendo colunas de opinião em jornais. Podemos sobreviver ao cidadão
médio que lê dois livros por ano, mas não estou convencido de que
podemos sobreviver a uma suposta elite intelectual que não vê diferença
literária entre Moacyr Scliar e Merval Pereira.
“Vão ter que me engolir”
Apenas para referir mais um exemplo (entre tantos) das invejáveis
capacidades intelectuais da elite social brasileira: na semana passada, o
jornal Folha de S.Paulo noticiou que uma celebridade global
havia perdido a compostura no Twitter após sofrer algumas críticas em
virtude de um comentário que havia feito na rede social. A vedete, longe
de ser uma estrelinha de quinta categoria, é casada com um dos
diretores da toda-poderosa Rede Globo.
Bem, imagina-se que uma pessoa tão gloriosamente assentada no topo da
cadeia alimentar brasileira certamente daria um excelente exemplo de boa
formação intelectual ao se manifestar em público por escrito, não é
mesmo? Pois bem, vamos dar uma lida nas sua singelas postagens, conforme
referidas na reportagem mencionada:
“Almas penadas, consumidas pela a inveja, o ódio e a maledicência, que
se escondem atrás de pseudônimos para destilarem seus venenos. Morram!”
“Só mais uma coisinha! Vão ter que me engolir, também f...-se, vocês são minurias [sic] e minuria [sic] não conta.”
Em quem se espelhar?
Não vou nem entrar no mérito da completa falta de educação dessa
pessoa, que parece menos uma rica atriz global do que um valentão de
boteco. Vou me ater apenas a dois detalhes. Primeiro: a intelectual do
horário nobre da Globo escreve “minoria” com “u”, atestando para além de
qualquer dúvida razoável que se encontra fora do grupo dos 25% dos
brasileiros plenamente alfabetizados (ela comete o erro duas vezes,
descartando qualquer possibilidade de desculpa do tipo “foi erro de
digitação”).
Segundo: ela acha que “minorias não contam”, demonstrando, portanto,
que ignora completamente as noções mais elementares do que vem a ser um
Estado democrático de Direito, ou mesmo o simples conceito de
“democracia” na sua acepção contemporânea. Do ponto de vista da
consciência de direitos políticos, sociais e de cidadania é, portanto,
analfabeta dos pés à cabeça.
Com os ricos e famosos que temos no Brasil, em quem o mítico e achincalhado “homem-médio” poderia mesmo se espelhar?
Referências:
Henrique Abel, advogado e mestre em Direito Público
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