Um grande banco de São Paulo reuniu nesta 3ª feira três vigas
chamuscadas do incêndio neoliberal que ainda arde no planeta: Clinton,
Blair e FHC. Que um banco tenha promovido um megaevento com esses
personagens a essa altura do rescaldo diz o bastante sobre a natureza do
setor e da ingenuidade dos que acreditam em cooptar o seu 'empenho' na
travessia para um novo modelo de desenvolvimento. Passemos.
As verdades às vezes escapam das bocas mais inesperadas. Clinton e Blair
jogaram a toalha no sarau anacrônico do dinheiro com seus porta-vozes.
Coube ao ex-presidente norte-americano sintetizar um reconhecimento
explícito: 'Olhando de fora, o Brasil está muito bem. Se tivesse que
apostar num país, seria o Brasil'.
Isso, repita-se, vindo de um ex-presidente gringo que consolidou a
marcha da insensatez financeira em 1999, com a revogação da lei de
Glass-Steagall.
Promulgada em junho de 1933, três meses depois da Lei de Emergência
Bancária, que marcou a posse de Roosevelt, destinava-se a enquadrar o
dinheiro sem lei, cujas estripulias conduziram o mundo à Depressão de
29.
A legislação revogada por Clinton submetia os bancos ao rígido poder
regulador do Estado. Legitimado pela crise, Roosevelt rebaixou os
banqueiros à condição de concessionários de um serviço sagrado de
interesse público: o fornecimento de crédito e o financiamento da
produção. Enquanto vigorou, a Glass Steagall reprimiu o advento do
supermercado financeiro, o labirinto de vasos comunicantes dos gigantes
financeiros em que bancos comerciais agem como caixa preta de
investimento especulativo, com o dinheiro de correntistas.
O democrata que jogou a pá de cal nas salvaguardas do New Deal elogiou o
Brasil, quase pedindo desculpas por pisotear o ego ao lado do grande
amigo de consensos em Washington e de corridas de emergência ao guichê
FMI.
Mas FHC é um intelectual afiado nas adversidades.
A popularidade contagiante do tucano, reflexo, como se sabe, de seu
governo, poupa-o da presença física nos palanques do PSDB, preferindo
seus pares deixá-lo no anonimato ocioso para a necessária à defesa do
legado estratégico da sigla.
É o que tem feito, nem sempre dissimulando certo ressentimento, como nessa 3ª feira mais uma vez.
Falando com desenvoltura sobre um tema, como se sabe, de seu pleno
domínio sociológico, ele emparedou Clinton, Hair e tantos quantos
atestem a superioridade macroeconômica atual em relação à arquitetura
dos anos 90.
Num tartamudear de íngreme compreensão aos não iniciados, o especialista
em dependência - acadêmica e programática - criticou a atual liderança
dos bancos públicos na expansão do crédito, recado oportuno, diga-se, em
se tratando de palestra paga pelo banco Itau; levantou a suspeição
sobre as mudanças que vem sendo feitas - 'sem muito barulho'' - na
política econômica ("meu medo é que essa falta de preocupação com o
rigor fiscal termine por criar problemas para a economia”) e fez
ressalvas ao " DNA" das licitações - que não reconhece, ao contrário de
parte da esquerda, como filhas egressas da boa cepa modelada em seu
governo.
Ao finalizar, num gesto de deferência ao patrocinador, depois de
conceder que a queda dos juros é desejável fuzilou: 'houve muita pressão
para isso'.
O cuidado tucano com os interesses financeiros nos governos petistas não é novo.
Há exatamente um ano, em 31 de agosto de 2011, quando o governo Dilma,
ancorado na correta percepção do quadro mundial, cortou a taxa de juro
pela primeira vez em seu mandato, então em obscenos 12,5%, o dispositivo
midiático-tucano reagiu indignado. A pedra angular da civilização fora
removida por mãos imprevidentes e arestosas aos mercados.
O contrafogo midiático rentista perdurou por semanas.
Em 28 de setembro, Fernando Henrique Cardoso deu ordem unida à tropa e
sentenciou em declaração ao jornal ‘Valor Econômico’: a decisão do BC
fora 'precipitada'.
Era a senha.
Expoentes menores, mas igualmente aplicados na defesa dos mercados
autorreguláveis, credo que inspirou Clinton a deixar as coisas por conta
das tesourarias espertas, replicaram a percepção tucana do mundo:"não
há indícios de que a crise econômica global de 2011 seja tão grave
quanto a de 2008", sentenciou, por exemplo o economista de banco
Alexandre Schwartzman,indo para o sacrifício em nome da causa.
Nesta 4ª feira, o BC brasileiro completa um ano de cortes sucessivos na
Selic com um esperado novo recuo de meio ponto na taxa, trazendo-a para
7,5% (cerca de 2,5% reais).
Ainda é um patamar elevado num cenário de crise sistêmica, quando EUA e
países do euro praticam juros negativos e mesmo assim a economia
rasteja.
Uma pergunta nunca suficientemente explorada pela mídia, que professa a
mesma fé nas virtudes do laissez-faire, quase grita na mesa: 'Onde
estaria o Brasil hoje se a condução do país na crise tivesse sido obra
dos sábios tucanos?'
As ressalvas feitas por FHC no evento de banqueiros desta 3ª feira deixa
a inquietante pista de que seríamos agora um grande Portugal, ou uma
gigantesca Espanha - um superlativo depósito de desemprego, ruína fiscal
e sepultura de direitos sociais, com bancos e acionistas solidamente
abrigados na sala VIP do Estado mínimo para os pobres.
Em tempos de eleições, quando candidatos de bico longo prometem fazer
tudo o que nunca fizeram, a fala de FHC enseja oportuna reflexão.
Saul LeblonNo Blog das Frases
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