Trancado
em um pequeno escritório, o australiano vazou 2 milhões de documentos
do governo sírio, fez um chanceler britânico perder as estribeiras e
ainda teve tempo de satirizar o editor do New York Times
Até a noite de quarta-feira
eram poucos os policiais que vigiavam a entrada da embaixada
equatoriana em Londres; passavam parte do turno apoiados no balcão da
recepção, batendo papo com um simpático equatoriano gorducho que recebe
as visitas, frequentes.
Onde
quer que Julian Assange esteja, sabe-se que haverá um constante
entra-e-sai, de amigos, jornalistas, advogados, cyberativistas. Haverá
um pequeno grupo de apoiadores segurando cartazes e tocando um mau
violão. E vez ou outra, uma turba de repórteres atrás da última notícia
sobre o WikiLeaks e seu fundador – quase sempre algo inesperado,
inédito, francamente provocador.
Naquele
sábado de julho, semanas depois de Assange ter pedido asilo na
embaixada, fugindo dos olhares dos policiais o recepcionista respondeu
animado à minha saudação:
- Como está tudo por aqui?
- Muito bom, muito bom!
Lá
dentro, uma jovem morena de braços tatuados me acompanhou. Passando
pela recepção, onde uma foto de Rafael Corrêa com a faixa presidencial
recebe os visitantes, há um corredor longo e branco; ao fundo dele, no
escritório modesto espalha-se uma balbúrdia de cartões de
congratulações. Coloridos. A janela está sempre coberta pelas cortinas
brancas – afinal, lá dentro vive um dos homens mais vigiados da Grã
Bretanha. Que invariavelmente está sentado à mesa de madeira, mergulhado
no seu laptop, entretido em uma quantidade inacreditável de dilemas
éticos, jornalísticos, jurídicos.
Julian
quase sempre é categórico: existe o certo, e o errado. “Só havia uma
decisão à qual a Corte Suprema Britânica poderia ter chegado”, me disse
naquela tarde. A Corte decidira enviá-lo para a Suécia, onde um
promotor pede sua extradição para ser interrogado sobre alegações de
crimes sexuais. Para Julian e seus advogados, um promotor não pode ser
considerado como autoridade judicial segundo as leis britânicas. “Eles
então usaram uma convenção que nem foi discutida no julgamento para
embasar a decisão. E é mentira”.
Foi
com plena convicção de que o processo tinha sérias falhas legais, que o
alvíssimo australiano tocou a campainha da embaixada no dia 19 de
junho, e não saiu mais. Surpreendeu o judiciário britânico e sueco, a
população do Equador, a imprensa internacional, a Interpol.
E seus amigos mais próximos. “Eu fiquei chocado quando soube”, disse
o jornalista americano Gavin MacFadyen. “Ele decidiu não avisar a
ninguém, nem mesmo aos que deram dinheiro para sua fiança. Se alguém
mais soubesse, poderia ser responsabilizado legalmente”.
Nos
dias seguintes parte da equipe do WikiLeaks já se reunia na embaixada,
retomando o ritmo de trabalho – a organização jamais teve uma sede.
Ali, continuou produzindo vazamentos saborosos, mostrando que o
WilkiLeaks está ativo, ao contrário do que muitos desejariam. Em 5 de
julho, começou a publicar os Arquivos da Síria,
mais de dois milhões de emails internos do governo sírio. A partir
deles, jornais do Líbano, Egito, Alemanha e Itália, além da americana
Associated Press, revelaram negócios de empresas europeias com o regime
amplamente criticado pelas nações as quais pertencem por massacrar os
oposicionistas.
Não deu nem três semanas, e a organização realizou uma elaborada ação virtual – uma “pegadinha” – ao colocar no ar um site falso
do jornal New York Times, no qual um suposto artigo do editor Bill
Keller, crítico voraz de Assange, pedia desculpas pelas rusgas passadas.
O estilo era tão convincente que o próprio New York Times tuitou. A
farsa gerou confusão, bate-boca virtual e críticas – afinal, afimou o
jornalista Green Greenwald, não pega bem para uma organização que
publica documentos verdadeiros falsificar um artigo. Assange&Co –
como assinaram no twitter – nem ligaram.
Aproximando-se de grupos como o The Yes Men,
formado por ativistas americanos que se fazem passar por empresários
para fazer palestras absurdas (em 2004, o Yes Men protagonizou uma
entrevista falsa à BBC, afirmando que a empresa Dow Chemical compensaria
as vítimas do pior desastre industrial da história, em Bhopal, na
Índia; as ações caíram imediatamente em 4%, ou 2 bilhões de dólares), a
ação visava criticar o silêncio do New York Times sobre o bloqueio
econômico realizado pelas empresas PayPal, Visa e Mastercard, que
suspenderam os serviços de doações ao site. “Isso sim não é
brincadeira”, tuitaram.
Por bem
ou por mal, a brincadeira conseguiu levar a notícia à imprensa
norteamericana. Apenas algumas semanas antes – e já com Assange na
embaixada – o WikiLeaks obtivera uma vitória
pouco noticiada tanto nos EUA quanto no Brasil. A empresa Valitor, que
opera as transações dos cartões Visa e Mastercard, perdeu uma batalha
judicial por ter suspenso as doações ao WikiLeaks. Uma corte islandesa
ordenou a reabertura das doações, mas a Valitor recorreu da decisão. Se
a senteça for mantida, será um precedente importante para outros
processos que estão sendo movidos pelo WikiLeaks contra as duas maiores
bandeiras mundiais de cartões.
A
saga do WikiLeaks deve, portanto, se arrastar por muitos meses ainda. O
que não a torna menos cativante: ainda nesta segunda-feira havia
diante da janela acortinada alguns apoiadores com seus cartazes –
muitos deles instalados desde que o Reino Unido triplicou a quantidade
de policiais na vigília após ameaçar, por carta, evocar uma lei de 1987
para suspender o status diplomático da embaixada e prender
Assange ali mesmo. “O Reino Unido não reconhece o princípio do asilo
diplomático”, declarou depois o Ministro do Exterior britânico William
Hague.
Se foi previsível a
resposta acalorada do presidente Rafael Corrêa, evocando a soberania do
Equador, foram poucas as ocasiões em que um chanceler do Reino Unido
perdeu as estribeiras desta maneira, pelo menos nos anos mais recentes.
Afinal, contestar um tratado de peso como a Convenção de Viena não soa
nada britânico.
É essa talvez a
principal qualidade do hacker, ativista, jornalista e provocador por
excelência. Mesmo enclausurado em um pequeno escritório, em prisão
domiciliar há mais de ano e meio, Julian insiste em fazer o que faz
melhor: desnudar o cinismo das versões oficiais. “Assange é uma pessoa
impossível”, reclamou certa vez um renomado jornalista britânico.
E o mundo é muito mais interessante com ele.
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Do Blog COM TEXTO LIVRE.
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