“O direito de defesa vem sendo arrastado pela vaga repressiva que
embala a sociedade brasileira. À sombra da legítima expectativa de
responsabilização, viceja um sentimento de desprezo por garantias
fundamentais.”
Márcio Thomaz Bastos
“Nós entregamos aos nossos juízes – individualmente considerados— e
aos tribunais, mais poder do que eles precisam para exercer suas
funções.”
Sérgio Sérvulo
O ministro Joaquim Barbosa declara em sua entrevista de final de ano — a
primeira de seu recém iniciado mandato, que não há Poder após o
Judiciário (e, aparentemente, nem antes…) e que suas decisões são
inapeláveis. Esqueceu-se de dizer, porém, que isso não as livra, as
decisões, de corrigenda, quando se trata de matéria criminal. É o caso
da anistia (C.F. arts. 21, XVII e 48, VIII), e é o caso do indulto e da
comutação da pena pelo presidente da República (C.F. art. 84, IX). E não
é só, pois o ministro Joaquim Barbosa e seus colegas não estão acima do
bem e do mal, eis que podem ser processados, julgados e condenados pelo
Senado nos crimes de responsabilidade (C.F. art. 52, II). Podem,
até, perder a toga.
Também os poderes do STF são susceptíveis de revisão. O Congresso
Nacional pode emendar a Constituição (o que, aliás, tem feito com
excessiva desenvoltura) e nela, até, alterar os poderes tanto dele
próprio quanto do Executivo e do Judiciário. E pode ainda, o Congresso,
legislar na contramão de um julgado do STF, e, assim, torná-lo sem
consequência. Os poderes do Judiciário (como os do Legislativo e do
Executivo), não derivam, na democracia, da ordem divina que paira,
autoritária, sobre os Estados teocráticos, ou da ordem terrena das
ditaduras. Atrás dos nossos Poderes, não está um texto de dicção
divina, ou um texto datilografado por um escriba do tipo Francisco
Campos ou Gama e Silva, mas um texto derivado de uma Assembleia, esta
sim um Poder, o único, acima dos demais. Foi exatamente este Poder que,
armado da força constituinte oriunda da soberania popular, ditou-lhe,
ao STF, existência e a competência.
Não obstante, o Supremo brasileiro se atribui hoje o poder de dizer a
primeira e a última palavra. O modelo é a Corte dos EUA, mas, se esta
tem a ‘última palavra’ do ponto de vista jurídico, ela a pronuncia
dentro dos estritos parâmetros que lhe são fixados pelo poder político,
na legislação judiciária. Na Alemanha, na Espanha, em Portugal – adverte
o jurista Sérgio Sérvulo – a suprema corte não tem regimento interno: o
exercício de sua atividade é pautado em lei, e, com isso, se estabelece
seu vínculo umbilical com o poder político.
Pouco entendendo de direito (convido o leitor a levantar os nomes dos
dez últimos presidentes da Comissão de Constituição e Justiça da Câmara
Federal), e, talvez por isso, votando ao STF um temor reverencial,
nosso Congresso fica de cócoras ante o Judiciário, aprovando tudo o que
se lhe pede (inclusive aumentos salariais): excrescências como as
súmulas vinculantes e repercussões gerais, contra as quais tanto se
bateu Evandro Lins e Silva.
De outra parte, esse mesmo Supremo deixou de exercer sua principal
função – o controle difuso de constitucionalidade – liberando com isso
as mãos dos tribunais e juízes ao arbítrio.
Não trago à discussão tema irrelevante, uma vez que (e dessa verdade
muitos se descuidam) as consequências das decisões do STF, de especial
nos julgamentos criminais, dizem respeito a todos os cidadãos, e não só
aos julgados e condenados. Daí, para horror do pensamento autoritário, a
sucessão de instâncias julgadoras e a sequência de recursos e apelações
e agravos, que sugerem impunidade, mas que simplesmente atendem à
necessidade de assegurar a todos ampla defesa. Na democracia só se
condena com provas.
É que essas precauções inexistem no caso do STF, pois ele age, no mesmo
julgamento, como primeiro e último grau, como promotor e juiz, e suas
decisões constroem jurisprudência a ser observada por todos as demais
instâncias. Assim, por exemplo, se, em uma determinada ação criminal, o
desconsiderar a presunção de inocência (transformada em “presunção de
culpabilidade”), estará condenando todos os acusados de todos os
processos vindouros a provar a própria inocência, e não a simplesmente
refutar a acusação; se em um determinado caso, o STF considerar
dispensável a prova material para caracterizar a culpabilidade de
determinado réu, estará dispensando a prova em todos os demais
julgamentos..
Uma coisa, desejada, aplaudida, é a sadia expectativa de punição dos
chamados ‘crimes de colarinho branco’; outra é a degeneração autoritária
do direito criminal.
As decisões do STF, seja no caso da Ação Penal 470 decretando perda de
mandato de parlamentares (competência privativa da respectiva Casa
legislativa, C. F. art. 55), seja, à mesma época, intervindo na
organização da pauta do Congresso mediante decisão monocrática em ordem
liminar, assustam o pensamento democrático, que, cioso da importância da
separação dos Poderes, reage ao papel de moloch autoritário que a
direita quer emprestar ao Poder Judiciário brasileiro. Um dos mais
perigosos movimentos desse autoritarismo que começa a quebrar a casca do
ovo em que foi gerado, é a judicialização da política, a qual, se
atende à fome voraz do Judiciário, é também acepipe que sai do forno dos
partidos e do Congresso, seja pela omissão desse, seja pelo vício
anti-republicano das oposições, das atuais e das anteriores (PT à
frente) de recorrerem ao Judiciário, para a solução de impasses que não
souberam resolver no leito natural da política.
De outra parte, a omissão legiferante do Congresso abriu lacunas legais
ou criou impasses que foram levados ao Judiciário que, assim,
‘legislou’ e legislou (não discuto o mérito), por exemplo, no julgamento
das cotas para negros nas universidades, na descriminalização do aborto
de fetos anencéfalos e na legalização da união civil entre
homossexuais. E legislou, então à larga, o STF sancionando decisões do
TSE, que se auto-incumbiu de fazer a reforma política que o Legislativo
postergou. Esse mesmo TSE se especializou em cassar mandatos.
No fundo a questão é esta: não há vazio de poder.
Na mesma entrevista citada no início deste artigo, o presidente do STF
condena as promoções de juízes por merecimento, pois isso, diz ele,
enseja a comprometedora corrida dos interessados atrás de apoios
políticos. É verdade, mas não é a verdade toda, posto que não se
aplica, apenas, à primeira instância. Em grau muitas vezes mais grave o
‘beija mão’ tem matriz na nomeação dos ministros dos tribunais
superiores, principalmente do STF, com os candidatos em ciranda pelos
vãos e desvãos do Executivo e do Senado à procura de apoios trocados por
promessas de favores futuros.
Pede a democracia um Congresso revigorado, talvez o da próxima
Legislatura – apto para realizar as reformas de que o Brasil necessita e
uma delas é a reforma do Judiciário, livre da vitaliciedade monárquica,
obrigado a trabalhar onze meses por ano, sujeito ao controle externo,
como todos os demais Poderes republicanos.
Roberto Amaral, Cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004.
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