O
Supremo Tribunal Federal deverá decidir nos próximos dias se os réus
da Ação Penal 470 têm ou não direito aos chamados Embargos
Infringentes. Se decidir que sim, a corte manterá coerência com a
jurisprudência de mais de duas décadas na casa e também com o voto do
decano Celso de Mello durante o próprio julgamento do mensalão. Se
decidir que não, pesará sobre o STF a suspeita de que o processo em
questão recebe um tratamento diferenciado — ou de exceção, como muitos
já o definiram.
Este é um debate
que, para o bem das instituições democráticas e da história do próprio
Supremo, nem deveria existir. A mera discussão já nos causa preocupação
e qualquer decisão que não seja a aceitação da validade dos
infringentes terá forte conotação política, mesmo que muito bem
fundamentada juridicamente. Isto porque não responderia a uma simples
questão: por que mudar o entendimento sobre a lei justamente agora?
Para
entender o caso: em 1990, entrou em vigor a Lei 8.038 que regula
processos e recursos tanto no Superior Tribunal de Justiça quanto no
Supremo Tribunal Federal. O texto, no entanto, não faz referência aos
embargos infringentes. Sua omissão não regulamenta, mas também não veta
tal modalidade de recurso.
Já o
Regimento Interno do STF dispõe de seis artigos, do 330 ao 336, que
tratam especificamente “Dos Embargos de Divergência e dos Embargos
Infringentes”. De acordo com o texto, os infringentes são válidos desde
que o réu tenha obtido ao menos quatro votos a seu favor. Portanto, há
23 anos os ministros julgam as ações penais com base no Regimento da
corte sem fazer referências à omissão da lei 8.038.
Vejamos
um dos casos julgados pela casa. Em 2007, os irmãos Batista recorreram
ao STF contra a condenação de 14 e 17 anos pela morte do advogado
Paulo Coelho, em Roraima, em 1993. O plenário manteve a sentença e os
dois réus entraram com embargos contra a decisão. Ao negar o recurso e
expedir a imediata prisão dos réus, o ministro Joaquim Barbosa afirmou
em seu despacho: “não cabem embargos infringentes no caso presente,
tendo em vista que não houve divergência de quatro votos em qualquer
questão decidida no acórdão embargado. Artigo 333, parágrafo único, do
Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal”. O Plenário acompanhou o
relator por unanimidade. Percebe-se, neste exemplo, que não houve
qualquer questionamento a respeito da compatibilidade entre a lei 8.038
e o Regimento Interno, até porque, para o Supremo, o seu regimento tem
status de lei ordinária.
Em 2
de agosto do ano passado, no primeiro dia de julgamento da Ação Penal
470, quando o plenário debatia o pedido de desmembramento do processo
para os réus que não tinham foro privilegiado à época da aceitação da
denúncia, o ministro Celso de Mello fez uma defesa enfática sobre a
vigência dos infringentes. Disse ele: “Os embargos infringentes se
qualificam como um recurso ordinário dentro do Supremo Tribunal Federal
na medida em que permitem a rediscussão de matéria de fato e a
reavaliação da própria prova penal. É o que dispõe o artigo 333, ao
permitir que, em havendo julgamento condenatório majoritário, portanto
não sendo unânime, serão admissíveis embargos infringentes do julgado. E
com uma característica: com a mudança da relatoria.”
O
argumento também foi incluído por Celso de Mello no acórdão do
julgamento, publicado em abril deste ano. Sobre a lei que entrou em
vigor em 1990, o decano foi taxativo: “Não obstante a superveniente
edição da Lei 8.038/90, ainda subsiste, com força de lei, a regra
consubstanciada no artigo 333, parágrafo I, do Regimento Interno do
STF, plenamente compatível com a nova ordem ritual estabelecida para os
processos penais originários instaurados perante o STF”. O decano
disse ainda que os embargos infringentes auxiliarão “a concretização,
no âmbito do STF, do postulado do duplo reexame, que torna pleno o
respeito ao direito consagrado”.
Vê-se,
portanto, que não há razão para o debate. O simples fato de suscitar a
dúvida a respeito da validade dos infringentes já contribui para
elevar perigosamente a influência política sobre os rumos de um
julgamento penal. Caminhar no sentido oposto, negando esse recurso aos
réus, violaria a garantia à ampla defesa e representaria um capítulo
sombrio na história secular da Suprema Corte brasileira.
Wadih Damous, conselheiro federal da OAB e ex-presidente da OAB-RJ.
Ronaldo Cramer, advogado.
No Revista Consultor Jurídico
Nenhum comentário:
Postar um comentário